domingo, maio 22, 2011

Macumba on-line



Faltam dez minutos para as 8 horas da manhã. Como acontece todos os dias, reduzo a marcha na Bahia com Contorno: paro o carro lentamente diante da imposição vermelha do semáforo à frente. Nunca passo direto por esse cruzamento.

Aqui, todas as manhãs, coleciono desgraças. Desgraças dos outros, o que não é bom, mas, em todo caso, seria pior se fossem minhas.
Explico-me: é que o trecho é local de trabalho de pelo menos três vendedores de jornais sensacionalistas, desses que todo mundo lê nos ônibus e no metrô, a caminho do trabalho, a fim de se inteirar sobre as desgraças do dia. Então é sempre assim: levanto os olhos e leio: “ESFOLADA VIVA”, ou, “ESTUPRADA, ESFAQUEADA E ABANDONADA EM MATAGAL” e ainda: “MATOU NAMORADA E PULOU DO PRÉDIO”, tudo isso grafado na mais sanguinea caixa alta, certamente para despertar nosso animal interior, ou talvez para aguçar nossa fome predatória, o nosso tão paradoxal fascínio pela violência.
Já cheguei ao ponto de fechar os olhos, nesse momento de parada obrigatória, e imaginar qual seria o infortúnio ou a catástrofe do dia. Então fico inventando os mais grotescos crimes e resumindo-os em manchetes; desço ao mais torpe instinto violento de que o ser humano é capaz e redijo sórdidas notícias mentais. Enfim, abro os olhos e, antes de arrancar, constato alarmada, que a vida real é muito mais terrível. Sim, a vida real é muito, muito mais terrível.

Depois de 20 minutos tentando estacionar, chego ao trabalho. E, de novo, o jornalzinho mais lido pelos belo horizontinos me persegue. Dessa vez acontece assim: surpreendo o vigia às gargalhadas, com um exemplar nas mãos. Ele ri e alterna seus quase soluços com a palavra “estúpida”. É lógico que fico praticamente morta de curiosidade, e quero rir também, porque, como é de conhecimento de todos, rir faz bem, assim como cantar, para espantar nossos males. (Risadas, cantoria e quem sabe, de quando em vez, uma fumacinha cheirosa de incenso, nos ambientes mais pesados).
Ele estende uma das mãos para mim (a outra se ocupa em desfazer as lágrimas resultantes do momento feliz). Na mão estendida está o tal jornalzinho e lá, num pedacinho de umas das páginas, a notícia que provocara a crise de riso.

Não chegava a ser uma desgraça. Na verdade, era uma quase desgraça. Eis a manchete: “NOIVA TENTA SE MATAR, MAS VESTIDO NÃO DEIXA”.
Foi assim que as coisas aconteceram, segundo o jornal: uma moça chinesa, de 22 anos, tinha um noivo, ao qual devia amar muito. Mas, como tudo nessa vida é fugaz, o romance entre os dois acabou. A pobre coitada  já tinha até comprado a indumentária para o casamento, um belíssimo vestido de noiva, com o qual, numa atitude de desespero e revolta, se fantasiou e saltou para a morte, partindo do sétimo andar de um prédio. Só que o vestido dela ficou pendurado nas grades da janela e a chinesinha ficou pendurada junto. Após isso foi resgatada com sucesso, não sem chamar a atenção dos transeuntes, que estavam lá embaixo rindo muito, filmando e fotografando tudo.
Minha primeira reação foi rir descaradamente. “Que corpo leve!”, pensei. “Que tecido resistente!”, repensei. “Que estúpida”. Concluí.
E, de repente, parei de rir. É que olhando bem para a fotografia que acompanhava a notícia, quase descobri um mistério; alguma coisa obtusa estava ali, tentando me seduzir. Então me dei conta de que aquela mulher de vestido esvoaçante pendurada numa janela transubstanciara-se em rosa recém brotada milagrosamente do concreto, sob um sol oriental. Flor selvagem, suicida, pendendo para o vazio. Ela resplandecia, flutuando , trágica, no fracasso de sua quase queda.
Eu  juro que não queria pensar sobre o futuro da rosa. Já seria demasiado triste refletir sobre sua solidão passada. Pior ainda pensar na dor que virá.

Mas,no fim do dia,tal pensamento se impôs. Ao ligar o computador me deparei com o seguinte anúncio: “Macumba on-line, experimente!” Adeus, ó aventura- da galinha- preta- com cachaça- e vela vermelha- na encruzilhada- meia-noite! O lado bom da coisa foi pensar nas repercussões positivas dessa “revolução tecnológica” no futuro da moça chinesa que, depois de muito sangrar, provavelmente metamorfosear-se-á em pétala vingativa.Se tal momento triunfante chegar, suas delicadas mãos de porcelana não precisarão nem costurar a gosmenta boca do sapo.
Bastará um clic no mouse.

quarta-feira, maio 04, 2011

Camila e outros bichos

             O meu amor pelos animais começou muito cedo, quando eu ainda era bem criança. Onde morávamos havia um milharal onde os gatos se multiplicavam. A cada dia surgiam novos bebês gato, que atraiam a atenção de nossos olhos espantados.
Quando eu tinha quatro anos nos mudamos para o bairro onde passei o resto de minha infância e lá não foi diferente: rapidamente meu irmão transformou nossa área de serviço  em um verdadeiro zoológico.
           Tudo começou com a Lassie. Era uma fofura quando nos foi apresentada. Pequena, gorducha e dona dos pelos negros mais brilhantes que já vi... enfim, uma beleza de vira-latas. Foi difícil convencer  a mamãe de deixar a linda cadelinha ficar, mas depois que me irmão e eu ameaçamos incendiar a casa, ela acabou cedendo. Lassie cresceu e se tornou uma grande companheira.
           Depois de sua vinda, chegamos à conclusão de que ela precisava de uma amiga. A partir de então muitos outros cães foram trazidos por meu irmão. Ele se comovia ao ver os pobres animais abandonados nas ruas e os adotava. Dessa forma, chegamos à surpreendente marca de doze cães. Doze cães, muito vivos e comilões! Ainda bem que todos viviam na mais perfeita harmonia com Lassie, nossa querida primogênita. Muitos adoeciam e morriam e outros eram trazidos. Perdi a conta de quantas Xuxas e paquitas tivemos...
            Havia também uma coleção de pombos. Eram muitos os viveiros espalhados pela área de serviço. Havia lindos pombos-correio e meu irmão, como talentoso comerciante mirim, sempre os vendia por um preço mais elevado. E os passarinhos? Eram muitos... canários, periquitos, pardais... armávamos alçapões sobre o telhado para apanharmos pardais! Depois, ao vê-los presos, eu me entristecia. Pobres passarinhos impossibiitados de voar! Mas eu nada podia fazer, apenas colaborar para que permanecessem encarcerados. Deveria viagiá-los, se não o fizesse, meu irmão me enchia de tabefes. Deveria também arrancar as penas das asas dos pombos para que pudessem andar pela área sem fugir.
             Mas não acaba aqui. Havia os macacos. Isso mesmo, os macacos. Eram micos,destes que povoam as árvores de nosso parques municipais. Tivemos muitos deles. Acredito que não há bichos tão estressados quanto os micos. Eles faziam muito barulho, pulavam demasiadamente e balançavam tanto as gaiolas que elas chegavam a oscilar. E coitado de quem se atrevesse  a colocar os dedos entre as grades do viveiro... Meus dedinhos eram repletos de furos: os dentes dos macacos eram muito afiados e eu não tinha mesmo vergonha. Não aprendia nunca.
           Eu gostava muito das tartarugas. Tínhamos de todos os tamanhos:algumas cabiam na palma da mão, outras eram tão gigantescas, que até assustavam. As menores gostavam de subir pelas paredes e ficavam lá por muito tempo. As grandes nem se moviam. Ficavam em um cantinho, com cara de quem está carregando o peso do mundo nas costas. Eu adora fazer festinha para uma delas, a Maior de Todas. Quase todos os dias, uma de minhas amiguinhas da escola ia lá pra casa me ajudar. Preparávamos o refresco, os biscoitos e até coroávamos Maior de Todas. Depois cantávamos e devorávamos o lanche. No fim da tarde minha amiga  voltava para casa e eu ficava como lanche dela todo pra mim.
            Tivemos poucos coelhos.Os pequenos foram assassinados pelos cães. O grande,chamado Juba, numa triste época de privações, foi assassinado por mamãe. Tornou-se um delicioso ensopado e parte do de dentro de cada um de nós.
             Ah.... Eu não poderia me esquecer dos filhotes de rato que meu irmão encontrou não sei onde! Imaginem que ele os estava criando dentro do forno! Até que mamãe os  descobriu e esmagou todos com o salto do sapato.
        Cães, pombos, pássaros, tartarugas, coelhos.... eram mesmo muitos bichos para uma área de serviço tão pequena...
              E havia os gatos. Foram muitos,mas lembro-me, com nitidez, de apenas três: Chaninho, Robozinho, e a Belíssima Camila.
              Chaninho foi o primeiro. Viveu conosco durante muito tempo, e então desapareceu. Ficamos deprimidíssimos. Depois de um ano, para a nossa surpresa, ele retornou. Estava muito magro e mancava. Eu me aproximei, cheia de alegria e de saudades e o resultado foi a marca de três afiadíssimas unhas em meu braço direito. Parece que não fui reconhecida. Ele estava diferente, era outro. Gatos também perdem  memória? Aquele havia perdido, e fico pensando em seu sofrimento, tentando se lembrar de sua casa, do caminho que o conduziria até lá. Pobre Chaninho! Em sua confusão mental, deve ter me confundido  com os seres  que o espancaram, pelo prazer da mais gratuita covardia. Depois ele foi embora de novo, e um dia o vimos grudado no asfalto da  rua dos Eucalíptos. Trágico fim.


      Robozinho era um filhote. Era um dos quinze gatos que habitavam o nosso zoológico. Eu não me interessava muito por ele até que,em uma das minhas tardes de solidão, o vi cair da escada da sala. Abandonei meus livros, meus brinquedos e meus amigos invisíveis e corri em sua direção. Estava morrendo. E eu , que nada podia fazer,assiti a sua morte. Foi durante a agonia que lhe dei nome. Morreu na boca da noite e  chorei como uma idiota.
          Eu gostaria de saber por que os gatos são tão enigmáticos.Eles têm algo de místico, seus olhos parecem portadores de grandes mistérios. São tão sensuais... e às vezes nos fitam como se conhecessem os nossos segredos. Minha infância não teria sido a mesma se eles não estivessem sempre por perto, como entes mágicos, ou simplesmente como bons ouvintes de meus monólogos infantis.
           A Camila foi especial. Assim como a Lassie, ela chegou em nossa casa ainda pequenina, era linda e quando cresceu, ficou mais bela. Seus pelos esverdeados tinham listras pretas. Nunca vi gata mais elegante. Ela me acompanhava sempre  por todos os lugares. As pessoas gostavam dela, principalmente, as crianças. Eu costumava passar tardes inteiras explorando um terreno baldio  que existia em frente à minha casa. Os vizinhos depositavam lá livros velhos e brinquedos estragados. Mas o que não era mais útil para eles para mim era motivo para festejar: encontrar um livro ou brinquedo me deixava muito feliz. Camila estava sempre comigo. O lote vago também dava acesso aos muros das casas dos meus melhores amigos: Bruno e Sandrinha. Eu sempre encontrava um ou outro e conversávamos por horas.... O assunto? Nem me lembro mais. Só me lembro que morríamos de medo do fim do mundo.

         Foi numa tarde de inverno que Camila morreu. Foi o dia mais frio do ano, e o céu estava cincento. Eu estava feliz,afinal, tinha encontrado uma moeda de cinquenta cruzeiros no caminho da escola. Eu brincava com um velotrol e atirava pedras em calangos, enquanto meu irmão e os outros meninos jogavam bola perto da calçada onde Camila dormia. Uma moto enlouquecida surgiu no início da rua, passou velozmente por todos e a atingiu. A gata correu para o lote vago. Todos interromperam a brincadeira e a seguiram. Lá estava ela, olhos arregalados de medo, sob uma árvore seca.
          Cena triste aquela, do ser amado se debatendo de morte.
        A levamos para casa e tentamos, inutilmente, reanimá-la, aspergindo-lhe água sobre a cabeça.
         Fizemos uma espécie de cortejo fúnebre para enterrá-la. Voltamos para o terreno baldio, perfuramos o chão com uma faca de pão, e no buraco raso depositamos o corpo morto do adorado felino.
        Dias depois, fui visitar seu túmulo: a terra não havia suportado seu  inchaço. O corpo, desprovido de todo veludo, estava exposto,  se desfazendo. Voltei ali todos os dias, como num ritual, e assiti , com gravidade, a todo o processo. Havia em meus lábios, um áspero gosto de fim.
       Durante muito tempo sonhei com Camila. Em meus devaneios noturnos ela aparecia e me olhava  de um jeito estranho. E o esquisito é que nos sonhos a aparição se dava justamente no lugar onde eu havia encontrado os cinquenta cruzeiros. Seria meu coração me avisando que dali para frente  minha vida sempre oscilaria nesse terrível contraponto  do  ganhar e do perder?

     Até hoje me lembro do cheiro do sabonte que estava em nosso banheiro no dia em que Camila morreu.

     Visitei um zoológico pela primeira vez quando tinha dezenove anos. Meus amigos estranharam quando eu disse que nunca havia estado ali antes, afinal, toda criança já fez semelhante visita pelo menos uma vez na vida.
    Eu sorri e me lembrei de Camila e dos outros bichos. Para quê ir ao zoológico, se ele está em casa, em nossa área de serviço?
      Não tive muitos amigos quando criança, mas tive gatos, cachorros, tartarugas... e para mim foi o suficiente.  
       Fui feliz.