quarta-feira, junho 27, 2012

Mendigos



Não falo das criaturas encardidas que perambulam como mortos-vivos pelos caminhos urbanos, muitas das quais, em suas vestes quase bíblicas (que bem poderiam ser restos de túnicas de profetas do velho testamento, corroídas pela ação inexorável dos milênios), possuem o aspecto mineral das rochas escuras e impenetráveis. Não falo também de outra categoria de mendigos, a que é vegetal, cujas pernas se assemelham a grossos troncos tomados por lodo e líquens; cujas unhas compridas têm a aparência de raízes de árvores ancestrais e cuja cabeleira, enroscada de galhos, folhas e ninhos de pássaros,se comporta como se estivesse na cabeça de um antigo fauno.

Falo de mim e de um cão de raça indefinida que, certa noite, quis tornar-se minha sombra, enquanto eu protegia meus olhos das travessuras de uma nuvem de poeira excitada pela impetuosidade do vento, que anunciava tempestades.

Naquela noite, na rua por onde eu passava, só havia a movimentação dos carros, o meu caminhar apressado e amedrontado e os passos do cachorro atrás de mim.

 Até que tentei fugir, mas de nada adiantou andar mais depressa: sua velocidade se adequava à minha; ele tinha pernas compridas, patas grandes. Parecia estar faminto, mas tinha ainda muita energia para tal perseguição.

E assim continuamos: eu caminhando, protegendo os olhos com as mãos,e o cão no meu encalço, rápido como eu, mas de cabeça baixa, como se estivesse com vergonha. Isso durou até a chegada ao portão de grades de minha casa.

Quando parei para pegar as chaves, o cão parou ao meu lado. Olhei para ele. Ele me olhava também, com parte considerável da língua para fora daquela enorme boca que babava.

“Oi, Au-Au, nessa humilde casinha só cabem eu e eu. Você infelizmente vai ter que voltar para seu canil, ou para seu dono malvado que te deixou sozinho nessa noite esquisita, ou sei lá, para país dos cachorros abandonados”, eu disse.

O desgraçado balançou o rabo, e como todo mundo sabe, cachorro balançando o rabo quando ouve a voz da gente  significa cachorro sorrindo pra gente.

“Esse castelo de pulgas riu pra mim. Estou fodida”. Pensei, enquanto terminava de destrancar o portão. Os olhos sorridentes do cão sem dono pediam.

Antes de subir as escadas, ainda pude ver, através das grades, aquela cara que implorava. Solenemente fingi indiferença. Um banho quente me esperava.

No aconchego do lar, após  um dia cansativo, tudo estaria a salvo se não fosse o espinho no dedo em formato de olhar de cachorro, me atravessando a carne.

Então, algumas horas depois (eu já estava de pijama e de luzes apagadas) uma coisa forte como o vento me impeliu para fora da cama, me fez caminhar até a porta da sala, me fez descer as escadas e olhar através das grades do portão.

Ele ainda estava lá, me esperando na ventania.

Deixei-o entrar. Subimos até à cozinha. Na geladeira encontrei pedaços de carne congelada há muito tempo, que eu jamais comeria.

Enquanto acionava os comandos do microondas e esperava o tempo necessário, olhei de novo para o cachorro, cujo sorriso nos olhos havia se transformado em agradecimento. Ficamos nos confrontando, silenciosos. A noite cantava, lá fora, as desarmonias inquietas de ventos de tempestade.

Lembrei-me de cenas muito antigas: numa delas eu esperava que meu pai viesse me salvar de uma melancólica noite de Natal. Naquela triste época de privações sempre havia a esperança de que o retorno do pai a casa fosse coroado com o alimento conquistado com o suor de seu trabalho.

Ele não apareceu. Esperei, sentada sozinha numa calçada, de onde era possível ver o fim da rua,onde ele apontava sempre, virando uma esquina. Como implorei ao sol frio do fim do dia  por aquela presença adorada! Enfim, escureceu e eu ainda esperava, acreditando. Sei que eu tinha olhos de cão abandonado na noite. Eu sei.

Outra lembrança deixou-me triste como a chuva que já cuspia seu caos no silêncio da madrugada: minha mãe, num domingo remoto, me prometeu o paraíso.  Prometeu que ficaríamos ricas; bastava que fizéssemos as malas e viajássemos para a cidade onde ela havia nascido. Uma caravana viria nos buscar e nunca mais teríamos fome.

Fiquei abraçada à mala durante todo o domingo, no início, com a euforia de toda espera feliz, depois, no fim da tarde, com o aspecto de uma rosa morta.

Esse foi meu rito de passagem. Cresci. Só mais tarde, quando soube que doenças mentais existiam, pude perdoar minha mãe.

E quantas vezes  se repetiu em minha vida adulta esse triste processo que transforma perfumes de sonhos em enterros de flores?

Havia um cachorro na minha cozinha, me fitando com olhos marejados de amor. Eu Atirava-lhe pedaços de carne, pelos quais ele agradecia, com seu sorriso de balançar de rabo. Eu era sua deusa.

 Hoje fico pensando sobre sua raça. Seria um fila? Talvez. Mas, é estranho, certa vez li que filas são extremamente amáveis com os donos, e proporcionalmente agressivos com estranhos. Aquele era dócil como um vira-latas.

A solidão e a falta podem  transformar até mesmo os mais aristocráticos pedigrees.

Mas o que eu queria de verdade é que, mesmo escaldada e faminta, eu fosse capaz de manter a nobre e orgulhosa arrogância dos felinos.


terça-feira, junho 12, 2012

Potes de vidro

    Dia desses vi Samuel Medina ficar perplexo diante de minha resposta negativa a uma pergunta sua. A pergunta era: " Si, você queria viver de literatura?"
    Bem, de certa forma eu já vivo pois , até onde eu saiba, não é todo graduado em letras que pode afirmar ser um TNS-Literatura, ou traduzindo em miúdos, um Técnico de Nível Superior cuja especificidade é trabalhar com a leitura literária.
    Tudo bem, ao dizer "viver de literatura", não era disso que ele falava. Estava, é claro, se referindo ao ato de escrever e toda a paixão relacionada a ele; se referia ao sonho de ficar o dia inteiro na frente do computador inventando histórias, pensando atravessado, evocando belezas. E recebendo por isso.  Se tornar conhecido, entrar para as listas do cânone, ser reverenciado, amado pelos estudantes de letras,etc,etc,etc.
    Eu disse que não queria. Eu disse que não podia. Eu disse que nunca esperei por isso.
    Se trata de simples apego ao chão onde piso: pelo pouco que pude sentir, o mercado é demasiado castrador: exigências e mais exigências e a poda de parte de nossos sonhos, censurados pela patrulha do politicamente correto. E há também a arrogância dos que já escrevem para ganhar dinheiro: muitos parecem crer que são a autêntica reencarnação de uma entidade  (uma verdadeira trindade) denominada MachadodeAssisGuimarãesRosaClariceLispector.
     Preciso deixar claro que nada tenho contra o mercado: sem ele os livros não teriam chegado às bibliotecas onde me nutri a vida inteira. Mas escritores metidos são uma merda muito fedida. Eu os detesto.

    Embora eu tenha alguns pré-requisitos, como ser sapatão (e não tenha outros- é bom lembrar!- como  ser feia,) eu seria uma péssima escritora, enfim, há muita concorrência, falta de mecenato e, o mais importante:  muita incompetência para as histórias. Sim: não sou boa de histórias, além do mais. Quando as invento, elas são bem fuleiras, não têm força. Sou boa mesmo é em remoer a minha história, cutucando as grandes chagas vermelhas das minhas pequenas tragédias pessoais. E sei também extrair sonhos de canções encharcadas de melancolia. Mas minhas tragédias e meus sonhos interessam a poucos e, por isso, se eu fosse tentar competir no mercado, certamente morreria de fome.
     Escrevo para que alguns leiam e amem as belezas que moram em mim.  E além disso, escrever vez ou outra é como guardar a beleza num pote de vidro, até que ela vire perfume: a juventude, o amor, delicadezas sensuais sob lençois, os excessos da paixão,  banhos quentes em  noites de outono...
    Então, alguémque a gente conhece, ou não, um dia abre o pote e nossa solidão toda invade suas narinas...
    Então há comunicação. Mesmo se a gente já tiver morrido.

    Queria ganhar muito dinheiro mesmo  escrevendo roteiros para as novelas da Rede Globo, porque seria só mais uma trabalho e nada teria a ver com a poesia.
    Mas não sei escrever histórias. Só remoer as minhas...

       Há um tempo abri um pote de vidro desses bem perfumados.Lá dentro encontrei poemas que venho traduzindo e postando aqui neste blog. No post anterior há três deles: Melodia, O vendo das ruas e Ovelha perdida. Todos de Anne-Marie-de-Backer, poeta Belga ( não é francesa, descobri recentemente), nascida em 1908 e falecida em 1987. Os poemas já postados e os que ainda serão fazem parte da obra Le vent des rues, primeiro livro de Backer, o qual é composto por 15 poemas.      
    Todos serão traduzidos e disponibilizados aos poucos.

Vamos a eles.. Depois divago mais sobre a sensação de traduzi-los nestes belos dias de ventos outonais...

Migrações
 Existe tão belo país, existe,
 De tão doces florestas e hálito de anêmonas;
 E olhares felizes que evocam suas tristezas,
E, por vezes, palavras ternas, esmolas.
 Há navios que singram para ilhas
Onde os mais negros pássaros têm ouro sobre as asas.
Guardiã cega de tesouros inúteis,
Há caminhos onde a vida é real.
 A Rainha do Oriente dorme sob as próprias ataduras,
O Amor dorme com ela na outra extremidade da terra.
 Quem vai te perdoar por ser quem você é,
 e por errar ao vento das praias solitárias?
Quem vai te perdoar por ser quem você é,
Meus olhos, que você fechou às claridades excruciantes,
E você Sonho ruim, que assusta e que inquieta
A razão, sem piedade para com o segredo dos amantes?
 Quem vai me perdoar quando eu estiver cansada,
Desta jornada febril, onde costumo abandonar tudo o que amo,
Sem nunca encontrar o sol ou as distâncias;
Desta jornada febril, onde eu giro em tono de mim mesma?
Recomeço
Cabelos- de-vênus cor de malva em meio ao trigo,
Nosso luto docemente se prolonga.
Todas as flores que já conversaram comigo
Não me disseram nada além de mentiras
 Permaneci fria e serena
Submersa em uma vida onde nada é seguro
Nem a água que se bebe, nem a memória
Daqueles que amamos, nem o azul ultramarino.
 Preparei meu último adeus,
Pois é preciso que se lembre de nós
Neste salão de cortinas azuis
Embaladas por valsas antigas
 Como um réquiem para aqueles que morreram
 E que nunca mais serão vistos novamente
 O vento atirava contra a minha porta
 Neve e folhas negras
 Mas em um casto caminho aberto entre o trigo,
A luz encontrou meus sonhos
Todas as flores que já conversaram comigo
Não me disseram nada além de mentiras
 A canção silenciosa das flores vivas
 Ressuscita em mim a vontade
De experimentar a mudança das estações
E o traiçoeiro resplendor dos meses
 E tudo começa outra vez, eu sempre soube.
Que meu universo se recolha
 E a virgem negra recebeu
 Minha fronte abatida contra seu vestido
 Sabedoria, quando eu a agradeço
 Pela movimentação de meus dedos gelados
Essa cândida hipocrisia
Que me liberta do passado
 Ela vê o meu amor, maior
Que o silêncio e a música
 E espreita, com seus olhos enigmáticos
Meu coração, que se protege.

                         
Resignação
 Eu não sei onde eu vou te encontrar. Sem dúvida
 Dentro do quarto, selado com cortinas rendadas.
E você verá chegar do fundo das estradas
Peregrinos sem rumo, e suas vestes escuras.
 Eu não sei onde eu vou te encontrar. Respigador
À beira do trigo cortado onde eu estaria sentada,
 Ou talvez parecido com a Esperança feliz,
Apanhadora de lírios, apanhadora de cerejas.
 Você mantém meu rosto imóvel e minha alma também,
 Longe destes oceanos onde nossos desejos estão escondidos,
Com sua voz sagaz você me faria ter medo
Das florestas, das ondas pesadas e das flores ​​sem estrelas.
Eu teria medo das canções que dançam nas estradas,
E revelam segredos, como fazem os Ciganos
 Canções que imploram para que as escutemos
Ao bater delicadamente nas portas dos aldeões
  Mas há canções pelas quais eu poderia morrer:
Elas vêm dentro da noite deslizar sobre minha face,
Ou como os pássaros voam para fora da janela
Atravessando os perfumes que as tílias agitam
E que nada trazem, mas parecem tudo prometer.

                                                                     Anne-Marie-de-Backer