quinta-feira, agosto 15, 2013

Os livros

 Os livros I

Era mil novecentos e oitenta e alguma coisa.
A criança que fui irrompeu, certa tarde, nos interiores da biblioteca da escola, fugindo de uma tempestade de granizo.
Esbaforida. Sã e salva?
Assustada.
Foi como entrar em universo paralelo.
E lá estava o livro. De capa dura, cinza talvez. Ou azul? Era cor fria, única certeza.
Abri-o. O que contava, como se chamava, se perdeu no tempo.
Me encantei para sempre.
Quis o livro para mim.
Mas não pude levá-lo para casa, nem emprestado. Não permitiram.
Fiquei, por isso, por dias, em estado de letargias de paixão.

Então o pai,que trabalhava carregando nas costas pesadas caixas de mercadorias, me disse que tinha um livro para mim.Que tinha pedido ao dono da livraria quando foi fazer uma entrega lá.
Só que o pai era esquecido e me enrolou por dias. ( Meses? Séculos?).
Mal sabia ele que a espera me adoeceu novamente.
E todas as noites em vez de abordá-lo no portão de casa procurando pelas balas chita que ele sempre nos trazia, eu perguntava pelo livro. No meu sonho o livro que eu ganharia era o mesmo da biblioteca, que tinham me negado, na tarde em que choveu gelo.

Certa noite o pai chegou bêbado, como sempre, com os bolsos repletos de balas, como sempre, cheirando a tabaco, como sempre e com um milagre nas mãos. Meu livro!
Para minha decepção, obviamente o livro não era o mesmo do meu desejo.
Mas chovia e eu estava só e com frio.
O milagre estava feito.

Os livros II

Mil novecentos e oitenta e alguma coisa outra vez.
Sandra Almeida morava quase em frente à minha casa e tinha uma mina de ouro lá: a coleção inteira da Série Vaga-lume. Só que a mãe da Sandrinha não gostava muito de visitas de crianças, então eu nunca tinha entrado na casa dela e por isso nunca tinha chegado perto da mina.
Mas, numa tarde bonita, a Sandrinha apareceu no portão ( de onde, todos os dias, ela acenava para mim) e me chamou.
" Simone, minha mãe foi ali. Vem pegar os livros que você quiser"

Entrar na casa da Sandrinha foi uma aventura. Mistura de duas sensações: a adrenalina que deve dominar o corpo de ladrões de banco,em plena operação e o medo de ser surpreendido que deve sentir uma pessoa que decidisse trepar na cama da mãe enquanto ela tivesse ido à padaria comprar fermento.
Eram três pilhas de livros, todas mais ou menos da altura que eu tinha na época, ou seja, um metro e alguma coisa.
Impagável sentimento de felicidade!

Os livros III

Eita década de 80! Volto a ela mais uma vez.
Estava em casa, voando em espaçonave de madeira recentemente inventada ou conversando com gatos?
A vizinha chamou. Tinha jogado um saco de livros no terreno baldio em frente. Disse que só depois havia se lembrado de que eu gostava de ler e de que os livros poderiam me agradar.
Saí em disparada ( em queda livre diretamente do planeta explorado ou deixei um gato , coitado, falando sozinho?)

Na vida real, eu era um pássaro sujo, esfarrapado. Sempre andava descalça.( Não tinha dinheiro para comprar chinelos...)
Foram anjos que sempre protegeram meus pés dos cacos de vidro daquele lote vago, transbordante de entulhos? Lá era minha segunda casa.
Os livros da vizinha estavam lá. Era um saco pesado. Tive de levar pra casa em três remessas.
Eu era, quase literalmente, um pinto no lixo.

Às vezes dói lembrar de que, durante grande parte da vida, foi dos restos dos outros que me nutri.
Até dos restos de livros, meu deus!
Até dos restos de livros...