sexta-feira, fevereiro 14, 2014

De como conheci o amor

I

Na história de como conheci o amor existe uma longa calçada, um hospital onde alguém que eu amava morria, uma tarde de novembro, uma bela mulher desconhecida e os olhares que trocamos quando passamos uma pela outra.
Tudo começa na longa calçada por onde eu passava, deixando atrás de mim um rastro de tristeza. Eu tinha deixado alguém que eu amava morrendo num hospital. O hospital era desses que cheiram à velhice naquela fase em que a morte ronda os leitos dos internos: cheiro de pele enrugando velozmente e de fraldas geriátricas sujas.  O cheiro estava nos quartos, nos corredores, nas escadarias, nas rampas, nos uniformes dos enfermeiros e nas flores pálidas de um jardim mal cuidado que me fazia pensar em cemitérios.
Eu ia pela calçada, cabisbaixa, pensando. Alguém que eu tinha amado havia ficado lá, naquele hospital, morrendo. Então a bela mulher desconhecida passou por mim na longa calçada e olhei para ela como quem pede socorro, como quem não quer morrer envenenado pela própria solidão. Olhei para ela como quem grita de desespero.
Alguém que eu amava morria num hospital.
II
Na história de como conheci o amor existe, também, um livro. Um livro que tinha uma história triste de paixão e que eu tinha lido para algumas pessoas, entre as quais estava a bela desconhecida que, logo depois, veio me pedir o livro emprestado. Me contou que havia passado por mim, certa vez, na longa calçada do Campus da Universidade e que meus olhos pediam socorro.
-É que alguém que eu amava- eu disse- tinha ficado, naquela tarde, num hospital, morrendo.
III
Na história de como conheci o amor existe uma velha canção, uma noite muito fria, um ônibus que nunca vinha e uma crise de tosse.
A velha canção é There Is A Light That Never Goes Out que sempre me deixou toda arrepiada porque eu tinha passado a minha adolescência morrendo de solidão e tudo o que eu queria era ouvir de alguém o que a canção dizia: “Me leve para sair esta noite/quero ver luzes/quero ver gente/Me leve no seu carro/Por favor, não me deixe em casa/ Porque esta casa não é minha, é deles e eu não sou mais bem-vinda/E se um ônibus de dois andares bater em nós/ morrer ao seu lado/que jeito divino de morrer/e se um caminhão de dez toneladas nos matasse/morrer ao seu lado/bem, o prazer e o privilégio são meus.”
E dentro da noite fria estávamos nós: eu e ela, a desconhecida de antes, a passante da longa calçada do campus. A crise de tosse era dela e o ônibus que não vinha nunca era o meu.
E a noite fria foi virando madrugada e ficando cada vez mais gelada. E nada do ônibus. Não obstante a crise de tosse, que piorava com a queda da temperatura, ela não me deixou sozinha.
E não ter me deixado só naquela escuridão foi como ter cantado para mim a velha canção dos Smiths.
III
Depois disso muita coisa aconteceu: ela veio morar comigo, nos “casamos” em Praga, quando prendemos um cadeado com nossos nomes gravados no parapeito de uma ponte, junto a milhares de cadeados semelhantes.
A ideia era atirar a chave no rio Moldava, mas ficamos com medo de matar engasgado algum peixe desavisado, que estivesse em extinção.
E até hoje ela me provoca arrepios, como uma velha canção que a gente nunca se cansa de ouvir.




segunda-feira, fevereiro 10, 2014

Um poema de Anne Sexton

Elizabeth foi embora

1
Você jaz no ninho de sua morte real.
Muito além das pontas dos meus dedos nervosos
que tocavam sua cabeça movente
Sua velha pele enrugando-se, o sopro dos pulmões
curto como de menina quando levanta a vista,
até encontrar meu rosto balançando sobre o leito humano.
E, em algum lugar, você gritou: me deixe ir embora, me deixe ir embora...

Você jaz na jaula de sua última morte
Mas não era você
Rechearam suas bochechas, eu disse;
essa mão de argila, essa máscara de Elizabeth
não são verdadeiras. De dentro do cetim e da camurça desse leito inumano
algo gritou: me deixe ir embora, me deixe ir embora...

2
Eles me deram suas cinzas e fragmentos de ossos.
Chacoalhando como cabaça, numa urna de papelão
Chacoalhando como pedras  abençoadas pelo forno que te consumiu.
Te esperei na catedral de feitiços,
E te esperei no país dos vivos
ainda com a urna ecoando em meu peito
quando  algo gritou: me deixe ir embora, me deixe ir embora...

Assim que joguei fora o que restou de seus ossos
 me ouvi gritando por sua face perdida
sua cara de maçã, pelo simples abrigo
 de teus braços, os odores de agosto de sua pele. Depois separei seus vestidos
e os amores que você deixou, Elizabeth.
Elizabeth, até que você foi embora.

Tradução: Simone Teodoro
 Anne Sexton . Elizabeth gone. In  To bedlam and part way back- 1960

Menina má

Acordo sempre 
em cima do horário
E corro
Contorno poças de lama
pulo 
o entulho
escalo muros e montanhas.

Espero
as longas demoras da noite
Choro
entre uma espera e outra
e entre uma noite e outra
envelheço

Danço quando posso
sozinha
no meio da sala

Ainda vou pro Oriente!
Trepo.
Santa Maria!
Pinta e Nina.
Odeio pinto
A vida me
nina
A vida, menina má.

Música me entorpece
Poesia me faz sonhar.
Sei que um dia
eu morro:

Mas trepo.
E meu gozo
constrange o paraíso.

sexta-feira, fevereiro 07, 2014

Saudades de você em Paris

Estávamos ali, nos arredores do Sena. Era primavera. Nossa estada na cidade chegava ao fim.
- Já estou com saudades de você em Paris- Ela disse.
Eu ri.
- Você já está com saudades de Paris. – Retruquei. – Eu sou apenas um detalhe decorativo dentro desse sonho que é estar aqui. Sou só parte de uma bela metáfora.
Ela ficou brava. Argumentou que sem mim a viagem não teria graça; que minha presença dava sentido a tudo.
Fiz silêncio, enquanto um vento bonito fazia com que nossos cabelos ficassem mais poéticos.
Tudo bem, ela teria saudades de mim em Paris. Mas seria sem Paris que eu voltaria para casa com ela. E eu, sem Paris, reclamaria de ter de acordar cedo para ir para o aeroporto. Eu, sem Paris, continuaria tendo surtos de mau- humor diante de cada segundo de atraso dos voos. Surtaria também por causa do desconforto das poltronas do avião, por causa do cansaço das 11 horas de viagem. Eu, sem Paris, construiria meu muro de lamentações por causa do preço do taxi e reclamaria muito, muito da poeira acumulada na casa, fechada há semanas.
E ela me teria assim, por quanto tempo quisesse,mas sem Paris. E não teria saudades, aposto, a menos que nos separássemos por dias, semanas ou meses, provocando, com o afastamento, aquele efeito mágico que faz todos os nossos defeitos desaparecerem.

E pensando em todas essas coisas, tive medo. Medo de que ela deixasse de me amar por causa de algum gesto bobo meu, com o qual, de repente, implicasse. Da mesma forma como alguns gestos bobos da pessoa que a gente ama podem também, ao contrário e inexplicavelmente, encher cada vez mais nosso coração de ternura; da mesma forma, inversamente proporcional, como ela, de um jeito muito bonitinho,derrete meu coração todo, quando chama biscoitos waffer de mirabel.

quinta-feira, fevereiro 06, 2014

Desconcerto

Tem um som de violino vindo de longe, muito longe agora... Se mistura às batidas e ruídos constantes de marretas e de máquinas de construção civil.
A música, mesmo com essas interferências todas, é bonita e triste ao mesmo tempo.
Mas não quero me emocionar.
Hoje quero ter a dureza da pedra que o operário, do outro lado da janela, insiste em arrebentar em pedaços.
(...)
Coisas bonitas e tristes me desconcertam.

Reflexões a partir de uma barata esmagada

Esmaguei a barata na parede. Ela era grande, bem nutrida. Longilíneas antenas.
Lamentei-me pela pintura recente, agora manchada por aquele líquido levemente avermelhado, ralo. Sangue de barata.
Pode sangue de barata funcionar como madeleine proustiana e cuspir em nossa cara estilhaços de fragmentos de passado, ruínas sobre as quais , de imediato ( e sem querer), nos debruçamos em trabalho de reconstrução arqueológica?
Aquele borrão na parede pôde e a ele se sobrepuseram outras marcas de sangue. De gente. E a parede era outra também e meu irmão, no meio da noite, a esmurrava e a chutava com fúria, a ponta dos dedões dos pés explodindo em carne viva e sangue muito, muito vermelho. (Era um barraco tão pobre que nem era preciso lamentar a pintura).
Ele tinha pesadelos. Monstros, samurais, assassinos e Bruce Lees eram as vítimas daqueles socos e pontapés desesperados e todos nós acordávamos sobressaltados com o trepidar da casa inteira.
Nossas paredes eram atacadas também em outras situações.
Quando nosso desejo rugia, por exemplo.
E nosso desejo rugia com muito mais força quando chegava a lamentável época de Natal.
Não é preciso explicar por que.
E meu irmão batia a cabeça na parede.
E eu batia a cabeça na parede.
Nosso desejo insatisfeito, uma tristeza funda ocupando, dentro de nós, o espaço de todas as outras coisas que faltavam. A aridez de nossas vidas.
A casa trepidava. O sonho ruim em plena luz, quando todos já estavam despertos.
Foi com 11 anos que entendi tudo.
Eu estudava um velho livro de biologia, ia ter prova.
Vi lá os combates nas savanas. Fascinada e assustada eu lia sobre belos e altivos felinos que estraçalhavam.
Nunca mais bati a cabeça na parede, nem quando estava com fome. Sepultei para sempre minha mágoa e revolta contra o pai e a mãe. Eles não tinham culpa, compreendi.
A vida era assim: uns estraçalhavam. Aos outros cabia a triste opção de não se deixar estraçalhar.
O tempo passou como tem mania de fazer, irremediavelmente.
Não sei se meu irmão se curou dos pesadelos.
Mas, desde então, os meus sonhos maus começaram e, em certa noite, acordei com meu grito.
Até hoje estou gritando.

O cu do pinto

 Você já soprou o cu de algum pintinho?- Perguntei.

- Não!- Ela respondeu, achando minha pergunta inusitada.-Por quê?

-É que acontece uma coisa meio mágica quando a gente faz isso. Foi meu pai que me ensinou, quando eu era bem pequenininha.

-Ah, é? O quê?- Ela estava curiosa.
- Ele nos manda beijos.
- O cu do pintinho? Nos manda beijos?

( Silêncio)
- E tem de soprar com força?
( Gargalhadas)

- Não! Não se sopra como se quisesse encher um balão. É sopro sem contato e de leve. É só mandar um ventinho lá. Ninguém quer estourar a cabeça do pintinho, né?
(Gargalhadas).

-Meu pai me ensinou outra coisa também.
- Que medo!( Risos)

- Você sabe quando um gato é macho ou fêmea?
- Não.
_ Meu pai me ensinou como saber. Gatos machos não ficam com o bingolim balançando como a maioria dos bichos. E são tão andrógenos... Como saber? Meu pai me ensinou assim: a gente escolhe um gato, abre as pernas dele, como se a gente fosse ginecologista, com cuidado, pra não machucar. Só vai ter pelo lá. No lugar que era pra ter alguma marca de diferença, não tem nada! É incrível como a natureza deles não está interessada em marcar diferenças. Amo gatos.! A lição do meu pai era: passa o dedo! E vai passando. Se for macho, o Bingolim aparece. Se não, vai ficar do mesmo jeito.
Ela quase morreu de rir.
- Sério? Seu pai então te ensinou a deixar o gato excitado? ( Gargalhadas, quase às lágrimas).
-Pois é. E me ensinou isso com o orgulho de biólogo, que ele nunca foi. O resultado disso foi devastador. A gataria que se multiplicava no nosso quintal não teve mais sossego: eu e meu irmão passávamos tardes e tardes perseguindo os coitados, só para realizar tais verificações técnicas.

O coelho da Clarice

Hoje quando abraçava minha mãe para encaixar o cinto de segurança dela no lugar apropriado para isso senti um clima estranho na rua onde havia estacionado o carro. Se não fosse a minha presença, a da mãe e a de um rapazinho com um uniforme antiquado, que me olhava como se algo surreal estivesse acontecendo, o lugar estaria deserto.

Então circulei o veículo para entrar pela porta do motorista. O garoto se aproximou falando que tinha um gato dentro do carro, no banco de trás.

- Como assim, um gato? Não deixei os vidros abertos, tenho certeza!

E fui ver, e lá estava um dos gatos mais bonitos que já vi, fazendo arte na espuma do meu banco traseiro, se espreguiçando, estapeando coisas invisíveis no ar.

- Gente, mas como ele entrou?

Então o menino de roupa engraçada me explicou que viu o gato entrando por baixo do carro, por ali, perto de onde fica o cano de descarga.

O gato era da avó dele.

Eu disse: Menino, você viu ele entrando mesmo , né? Porque eu juro que não estava tentando roubar o gato da sua avó.

_ Não moça, vi sim. Posso pegar ele de volta?
_ Pode.

Aí o menino pegou o gato e, não obstante todas as explicações físicas de como o bichinho tinha conseguido entrar, eu acabei ficando com uma deliciosa sensação de mistério, como aquela que a gente fica quando lê a história da Clarice Lispector sobre um coelho, gordo, muito gordo que conseguiu escapar de uma gaiola cujas grades eram muito estreitas e que estava ,definitivamente ,trancada.

Mulheres em trânsito

Tudo engarrafado, aí a alça do sutiã escorregou. Fui arrumar e devo ter demorado dois segundos a mais para arrancar e levei um buzinaço na orelha que quase me deixou surda. Fiz sinal para o moço mal educado voar por cima do meu carro. Ele ficou bravo, jogou farol alto, me ofuscou. E colou. Ele ia colando e eu ia reduzindo. Tava com pressa não. Nem tinha como. O moço, todo plaboy, ficou nervoso com minhas reduzidas e, com fúria, foi pra pista da esquerda pra ficar do meu lado, pra me xingar. Abriu o vidro e deu um berro, que nem ouvi direito, mas fui logo dizendo:
_Ô do pinto pequeno!

Porque, na minha opinião, uma pessoa pra agir assim, de forma tão arrogante com as outras, só pode ter algum problema de autoaceitação.

Aí ele ficou uma fera.
Me mandou ir pra puta que pariu e me chamou de sapatão. E fechou o vidro rapidamente,porque só então percebeu que eu não estava sozinha: Samuel Medinaestava comigo, eu não era uma mulher sozinha dirigindo.

Pra puta que pariu eu nunca fui quando me mandaram pra lá, porque minha mãe é uma linda e mesmo se tiver sido puta, isso não é da conta de ninguém.
Mas ,pelo menos, fui reconhecida.
Se pudesse, eu andava com rótulo: sapatão enfurecida: favor tratar com delicadeza.

Zangief

Hoje na academia, um rapaz que era a cara do Zangief do video-game se aproximou de mim e me perguntou se eu lutava alguma coisa. Aí eu disse que não, que já lutei há um milhão de anos, uma lutinha coreana que não valia nada. Ele me disse assim" Você parece aquelas "muié" que luta." Eu ri e ele foi lá levantar 200 quilos no supino. Cinco minutos depois voltou, perguntado por que eu usava esse " negócio" no joelho. ( O negócio é uma par de joelheiras). Expliquei que machuquei o joelho no início do ano, que por isso faço musculação, para fortalecer os músculos, e que a joelheira evita lesões nas articulações na hora dos exercícios mais pesados. Então o cara me disse que também tinha machucado o joelho, que era go go boy(!!!!) e que tinha caído de um palco na hora que tava dançando e tirando a roupa. Segurei a gargalhada. O menino era meio bobão, coitado. Sempre me dá vontade de rir desses meninos fortões e bobões, como a gente ri de uma criança que lambuza a cara toda tomando sopa.

Mas confesso que gostei de ouvir que eu pareço uma mulher que luta. Assim como gostei de ouvir outro dia de um enfermeiro que ele achava que eu tinha estudado Educação Física. Assim como gostei de ser barrada na porta do shopping recentemente ( os seguranças perguntaram para mim e para Raquel se a gente tinha mais de 18. Respondemos. Eles pediram a confirmação do documento. Mostramos.)

Bom saber que o tempo tem sido um camarada. Gosto muito mais de mim hoje, trintona, do que quando eu tinha vinte e poucos anos!!!!

Na periferia da periferia

Aqui estou, na periferia da periferia da periferia da periferia Ad infinitum do Capitalismo. ( Leia-se bairro da Lagoa, região de Venda Nova, Zona Norte de Belo Horizonte, mais especificamente rua 28, templo de consumo à moda periférica, desde a minha infância longínqua. Construções mal planejadas, aglomerados de lojas onde se vende de tudo, desde porta-moedas a carros semi-novos).
Meus olhos não acreditam: entre duas lojas de sapatos de parede mofada, uma Cacau-Show.
Fico comovida e compro uma trufa.