sexta-feira, junho 27, 2014

Sem título

Hoje acordei me contorcendo de cólicas, chamando por Raquel.Mas ela já tinha ido embora e eu já sabia disso, porque ela sempre sai antes de mim. Mesmo assim, eu fingi que não e percorri todo o apartamento repetindo o nome dela.
Aí foi a hora da madeleine mergulhada no chá: o cheiro e o frio de uma outra manhã entraram pelas janelas. Era 1986, acho. Eu tinha 5 anos. Me lembro de ter acordado e de ter notado a ausência de minha mãe. Percorri todo o barraco ( que para mim era enorme, por causa do meu tamanho e tinha ficado maior porque ela não estava lá)
Acordei meu irmão. Contei pra ele sobre meu desespero. Não sei qual de nós dois teve a ideia de sair a procura da mãe pelas ruas do bairro.
Saímos. De mãos dadas ( acho que foi a única vez em nossas vidas que andamos assim: depois disso nossos punhos sempre estiveram fechados: ele para bater e eu para redobrar a força da defesa)
Meu irmão era também cabeludo. Tinha cabelos lisos, como os de minha mãe. Os meus eram Black Power, como os de meu pai.
Não andamos nem um quarteirão assim, descabelados, cheios de meleca no nariz e desamparados: na primeira esquina nos encontramos com ela, que tinha saído pra comprar pão.
Brigou com a gente, não entendeu a nossa solidão.
Tirou as melecas dos nossos narizes, fez uma trança nos meus cabelos.
Retornamos, os três, de mãos dadas, para casa.

terça-feira, junho 24, 2014

Desordem

Porque ela passou 
por aqui
dentro de mim tudo é
desordem.

Porque ela passou
por aqui
-Estação de loucura-

não há temperatura
em que eu não seja febre

não há voz
em que eu não seja
grito

Porque ela passou
por aqui

há apenas
a dor
da pele
cortada à volúpia.

sexta-feira, junho 06, 2014

Blue para a lâmina das horas


A mãe dormia
de boca aberta
quase toda vestida de tempo.

A pele do corpo inteiro 
cortada: a lâmina das horas.

Bem de perto
as linhas do rosto formam um mapa.
De dentro dele
o desenho de uma palavra,
pedra não lapidada,
escapa:

-Órfã!

A palavra-pedra pulsa.


Escorro pelas fendas da noite
comendo a cor amarela
das lâmpadas dos postes
das ruas em outono,

ruminando
a memória entranhada
num viaduto
numa árvore
numa esquina
num muro

Essa infância triste
misturada a ladrilhos.

Mas a pedra ainda pulsa
A ineficácia das fugas.

Ao redor
a música dos ponteiros
imita
a ameaça da bomba.

quarta-feira, junho 04, 2014

O pé, a cruz, o prego

O pé, a cruz, o prego

Era eu 
e uma grande ferida.
Estávamos em posição de combate.
Ela funda e vermelha
obstinada inflamação
no pé esquerdo
da mãe envelhecida

A ferida tinha a força
de tudo o que continua

Eu tinha
uma garrafa de soro
um pacote de esparadrapos
um rolo de ataduras

e um amor feroz
mais fundo do
que tudo  o que  parece
nunca mais
ter
fim.

Cio

Ela é toda
tão felina
quando a pele inflama
alisa, alisa
o corpo inteiro
depois
arranha