sábado, julho 02, 2011

O monstro do armário II


Era o início do ano letivo no Instituto Educacional. Marina cruzou ofegante, o amplo pátio da escola secundária. Seus olhos automaticamente se voltaram para o grande relógio fixado na parede verde acima da porta da diretoria. Sete horas e dez minutos. Estava atrasada. Sempre estava. Perguntava-se sempre quem teria sido o indivíduo que teria inventado esse horário absurdo para as aulas começarem. “Só pode ser coisa de padre”, pensou. “Coisa de gente que dorme cedo todo dia porque não tem mais nada de interessante para fazer”.
Ela mesma não conseguia dormir antes de meia-noite, por isso acordar tão cedo era um suplício.
Isso mesmo, um suplício. E acreditava que tudo fora planejado perversamente pelo padre do horário absurdo, só para que as pessoas comuns, como ela, que só dormem depois da meia-noite (porque ficaram vendo um filme legal, ou então lendo um livro pornográfico, ou sei lá, fazendo amor deliciosamente), sofressem, porque o prazer sempre foi um pecado mesmo, na concepção desses religiosos.
No momento em que amaldiçoava toda a congregação jesuíta e andava a passos largos, em direção à sala quatorze, esbarrando em outros alunos que provavelmente também estavam atrasados como ela, um cartaz cor laranja, colado em uma das paredes verdes do pátio, chamou sua atenção.
Marina diminuiu a velocidade de seus passos. Já estava atrasada mesmo, não faria muita diferença perder mais um minuto na leitura do tal cartaz. Aproximou-se e leu as letras salvadoras:




CONVITE

 O INSTITUTO EDUCACIONAL (I. E) TEM O PRAZER DE CONVIDAR A TODOS OS INTERESSADOS PARA A PALESTRA SOBRE “A IMPORTANCIA DO LIRISMO NOS DIAS ATUAIS”, A REALIZAR-SE NO DIA 3 DE FEVEREIRO DO ANO CORRENTE, ás 9;30h, EM NOSSO AUDITÓRIO PRINCIPAL.
A PALESTRANTE SERÁ VIRGÍNIA. L, PREMIADA POETA DA ATUALIDADE.
O PÚBLICO ALVO: TERCEIRO ANO DO ENSINO MÉDIO E TODOS Os INTERESSADOS EM POESIA.

CONTAMOS COM SUA PRESENÇA.

ATENCIOSAMENTE,

 A COORDENAÇÃO.

       Marina estava começando o primeiro ano ainda, mas julgou que não haveria problema trocar as duas últimas aulas de Física, matéria que detestava, pela palestra sobre poesia. Então seu primeiro dia de aula não seria tão penoso. Não poderia fugir das duas primeiras aulas de Biologia, mas, para compensar, mataria as de Física. Sem nenhum remorso. Tinha só quinze anos e se considerava muito responsável para tão pouca idade. Uma “matadinha” de aula de leve não faria mal ao seu caráter. Seu pai sempre dizia que o maior ato de irresponsabilidade dele tinha sido ter tido uma filha com apenas 20 anos, com uma mulher que ele nem conhecia. E que, no entanto, esse ato irresponsável tinha se transformado na maior alegria da vida dele. “Quem sabe”, ela pensava, “ eu não tenha a mesma sorte?”

Os dois primeiros horários, como já previra Marina, foram uma tortura chinesa. Ela contava os segundos, que pareciam girar num relógio diferente daquele onde olhara as horas pela manhã. O tempo havia parado. A professora de Biologia parecia falar uma língua estranha, tão amplo era seu vocabulário de palavras esquisitas. Um garoto, sentando perto de Marina, tirava melecas do nariz, com as quais fazia bolinhas, que arremessava nos cabelos louros de uma garota que tentava fazer as sobrancelhas olhando-se num minúsculo espelho. Uma formiga, lenta, como se estivesse sem uma das patas, subia, com sofrimento, pelos tornozelos de um garoto gordo, sentado à sua frente. “Coitada da formiga”, Marina pensava, “ não sabe onde está se enfiando”.

 Quando pensava no terrível destino da formiga desorientada, o sinal bateu. Estava alforriada. Não via a hora de ir para a palestra logo.

Ao se levantar, ainda pôde perceber que o garoto das bolinhas de meleca havia desistido de acertar seu alvo de madeixas tingidas de amarelo. Agora ele comia as bolinhas, enquanto desenhava pênis de todos os tamanhos, em uma folha de papel ofício amarrotada.

O auditório principal era gigantesco e estava quase lotado. Pouquíssimas poltronas permaneciam desocupadas. Marina teve a impressão de que a escola toda fugia das aulas dos últimos horários, porque não era possível que todo mundo estivesse interessado em um tema tão esquisito como o daquela palestra. As salas de aula deviam estar vazias. Mas, embora não estivesse se sentindo muito confortável no meio daquele monte de gente, pelo menos se sentia tranqüila: se fosse punida pela escapadela, não seria sozinha.
Virgínia. L, com os olhos brilhantes, falava, com uma voz quase masculina, que ecoava por todo o auditório, através das caixinhas de som, estrategicamente instaladas nas pilastras:

__ Quando falamos em poesia lírica, estamos nos referindo aos textos poéticos onde há subjetividade, ou seja, o que se lê nos textos líricos é uma visão pessoal, individualista do poeta,;são seus sentimentos que estão ali,escancarados, sua sensibilidade, seus segredos, seus medos. O mesmo não ocorre na poesia épica, uma vez que o objetivo desta é contar histórias, na maioria das vezes, histórias dos feitos heróicos de um povo. Há um afastamento do poeta em relação ao que escreve; o sentimento que predomina na épica é o orgulho do poeta de ser parte daquele povo cujo heroísmo ele canta. Mas, observem: é um sentimento que ele compartilha com os demais, é um sentimento coletivo. Não há espaço aqui para o individualismo...

Marina não desgrudava os olhos de Virgínia. Gostava de poesia desde pequena, quando seu pai lia versos para ela antes de dormir.
Depois de muito falar sobre o individualismo dos poetas líricos, sobre a proximidade entre poesia e música, sobre a lira, instrumento musical muito antigo que acompanhava os poemas líricos na antiguidade, Virginia se pôs a falar da morte, que, de acordo com ela, era um dos temas mais abordados em toda a lírica mundial, em todos os tempos:

__ Agora, gostaria de ler um poema do qual gosto muito. Chama-se “Esta é a graça” de Henriqueta Lisboa.

Ao dizer isso, abriu um livro tão espesso, que parecia conter todos os poemas do mundo, e começou a ler, com a voz muito grave:

__ “Esta é a graça dos pássaros:
Cantam enquanto esperam.
E nem ao menos sabem o que esperam.

Será porventura a morte, o amor?”

A música e o significado deste último verso ainda ecoavam nas caixinhas de som e nos ouvidos de Marina, quando a porta vermelha do auditório se abriu. Virginia continuava a leitura do poema, no entanto Marina não ouviu mais. Toda a sua atenção se voltou para a garota que havia entrado no salão. Ela era alta, tinha a pele bonita e cabelos compridos. Os olhos eram escuros como os cabelos. Ela usava jeans e camiseta. Havia um desenho tatuado em suas costas, mas Marina não conseguiu enxergá-lo, antes porque a garota ainda estava longe e o desenho era pequeno, e nem depois, no momento em que a tatuada se sentou ao seu lado, quase caindo em seu colo, porque os cabelos dela encobriram o desenho.


Todos esses movimentos, de pernas e quadris da tatuada e dos olhos de Marina duraram exatamente o tempo de leitura de quatro estrofes do poema que Virgínia declamava. Quando a tatuada finalmente se acomodou na poltrona ao lado, Virginia lia a última estrofe do poema, que Marina ouviu ainda um pouco perplexa:

__ E minha voz perdura neste concerto
Com a vibração e o temor de um violino
Pronto a estalar, em holocausto,
As próprias cordas_ demasiado tensas.

2 comentários:

Teixeira disse...

Sobre o seu comentário no meu blog: Eu aposto que não.
E ainda: well, the pleasure, privilege is mine.

Sobre o seu texto: ainda roubarei esse personagem, é só esperar!

Samuel Medina (Nerito Samedi) disse...

Eu acho que esta continuação está comprovando uma suspeita de que você está condensando em poucas palavras todo um romance que seria inesquecível.