sexta-feira, dezembro 27, 2013

E agora extraio sonhos das entranhas ocas de uma canção melancólica

Uma vez escrevi um poema chamado" Visitando Ruth". Na época fui bombardeada de perguntas, afinal, quem era essa tal de Ruth? Um amor antigo? Um amor platônico , ou pseudônimo para uma apaixonite crônica? Acho que naqueles idos esclareci para poucos o mistério. Não sou dessas que explicam poemas. Para mim a penumbra é um dos ingredientes principais de um texto poético. É preciso haver penumbra para dormir e sonhar...

Mas hoje, não sei por que, me deu vontade de contar quem é a Ruth. Mas antes vamos ao poema:

Visitando Ruth

O outono se insinua triste no azul sem nuvens do lá fora...
Há poucas horas, o sol frio desenhou minha sombra no asfalto sujo...
Cores estranhas dançavam em meu coração...
E agora extraio sonhos das entranhas ocas de uma canção melancólica

Em meus pensamentos, os trens desaparecem sempre em curvas cor de cinza
Suaves garotas, numa tarde de verão, trocam delicadezas entre si:potes de mel, conchas onde moram muitos mares e o arco-íris.

E ainda sonhando
colhendo amoras e flores em minha infância de árvores
e caindo, inocente, em minha primeira armadilha de olhos
te evoco
nua e bela
como a pintura impossível
das improváveis asas de um anjo.


Escrevi "Visitando Ruth" numa tarde azul de outono, dessas em que a gente quase sufoca de tanta beleza. Estava no meu quarto, ouvindo uma canção da trilha sonora de "Tomates verdes e fritos" e sonhando, é claro.
(ouvir música para mim é algo sagrado;um ritual como é a oração para os crentes).
Quem assistiu ao "Tomates" saberá que uma das protagonistas se chama Ruth. A outra é a selvagem Idge ( com a qual sempre me identifiquei..)
Há quem diga que na trama há uma amizade profunda entre as duas. Eu sempre enxerguei mais com meus olhos, talvez tendenciosos. ( Para mim o filme é repleto de metáforas homoeróticas. A maioria delas envolve comida, como a cena em que d
epois de ter enfrentado um enxame para colher um pote de mel, Idge o oferece a  Ruth, que entre o espanto e a alegria, experimenta seu conteúdo lambendo o dedos.

A canção da trilha sonora que dá nome ao meu poema se refere ao momento em que Idge, de longe, escondida entre arbustos, com a cara mais triste do universo inteiro, observa as cenas da vida de recém-casada da amiga. (Momentos  felizes, a princípio, mas que depois se transformarão na tormenta que será decisiva para o desfecho do conflito).

Então é isso. Era outono, eu estava triste e sozinha e ouvia a canção "Visitando Ruth", do filme "Tomates verdes e fritos". Fui me lembrando de trechos do longa e pedaços de minha história foram se misturando com eles, num devaneio melancólico e lindo.


Segue a canção:

http://www.youtube.com/watch?v=sbSF7mxcmmw

quinta-feira, dezembro 12, 2013

Ainda era verão em Berlim





“ARBEICHT MACHT FREI”- O TRABALHO LIBERTA. O portão era pesado, alto, escuro. Cada letra dessa mensagem era uma espécie de variação artística do formato tradicional e monótono das barras de ferro que, unidas, compõem as grades das prisões. Os dizeres eram parte do portão da jaula e, se não estivéssemos em um campo de concentração, seria até um belo trabalho decorativo.
Além de pesado, alto e escuro, o portão era fúnebre, como o de um cemitério antigo e contrastava absurdamente com as fatias de azul do céu, vistas através das barras de ferro. Eu estava em  Sachesenhausen Concentration Camp , localizado nos arredores da capital alemã, fazendo, acreditem, turismo. O fato é que este lúgubre lugar, onde mais de cem mil pessoas foram assassinadas durante o Nazismo, foi transformado em um triste museu que, na atualidade, recebe visitantes de todo o mundo.
Ainda era verão em Berlim. Avancei para o lado de dentro. Precisei fazer um esforço maior do que comumente faço para abrir portas normais. As dobradiças rangeram, como num filme de terror. Antes de dar início ao meu passeio sombrio, abri e fechei a porta da gaiola umas três ou quatro vezes. Simples assim: abrir e fechar, sair e entrar, como se aquelas grades, outrora sempre cerradas, nunca tivessem sido o sinônimo de uma sentença de morte.
II
Nossa viagem, até aquele momento, tinha sido feita de vastos sorrisos ensaiados e direcionados para a sofisticada lente de nossa câmera fotográfica. Mas quando atravessei o portão de Sachesenhausen, algo mudou para sempre: ali, do lado de dentro, eu não poderia jamais sorrir. Um mal-estar estranho foi crescendo em mim e imprimindo gravidade em meu rosto. Não obstante o silêncio sagrado que envolvia o lugar, o peso de um sofrimento terrível se fazia presente, como se gritos de pavor houvessem atravessado as décadas e estivessem ali, reverberando.
Das centenas de barracões (ou alojamentos) de Sachesenhausen poucos foram preservados. Nas bases retangulares dos que foram demolidos estão depositadas inúmeras pedras, que representam cada uma das vítimas do genocídio.
É preciso “ter estômago” para entrar nos barracões que sobraram. Em um deles (outrora enfermaria) há uma rica exposição contendo informações sobre a rotina médica do campo (sobretudo a respeito das castrações e das experimentações médico-científicas brutais que lá ocorriam); há biografias de prisioneiros e de nazistas, objetos pessoais (frascos de medicamentos, malas, louças e talheres, vestuários diversos, etc).
De todas as coisas, vistas cuidadosamente, duas me fizeram divagar: uma minúscula lata de açúcar arredondada, semelhante a essas em que, hoje em dia, se comercializam pequenas quantidades de rapé (ela estava amarrada a uma correntinha, como se relógio de bolso fosse) e um pijama listrado, azul e branco, dobrado dentro de um expositor de vidro. O número de identificação do prisioneiro, costurado no tecido, à altura do peito, estava visível. Logo acima havia uma fotografia em preto e branco: um judeu vestia aquele pijama.
Objetos têm uma energia extraordinária. E, não sei explicar por que, alguns têm mais do que outros.
A latinha de açúcar tinha legenda. Dessa maneira fiquei sabendo que ela tinha pertencido a um judeu que a protegia (e a seu conteúdo, é claro) como teria defendido  uma mina de ouro.  Estava presa entre seus dedos quando seu corpo foi levado ao crematório para incineração.
Então, um fragmento triste da história se insinuou em meus pensamentos: fiquei imaginado o homem lá, dentro daquele inferno, fazendo apenas uma lamentável refeição ao dia, adoecendo de corpo e alma de tanto trabalhar além de suas forças, vendo morrer, um a um, seus companheiros e sofrendo de saudades dos filhos, dos quais, em algum outro campo distante, talvez só restassem as cinzas. E esse homem aperta a latinha entre os dedos, com força. Ela quase perfura a carne da palma de sua mão direita. E, dos míseros gramas de açúcar que há dentro dela, o homem coloca na língua apenas meia dúzia de grãos quase invisíveis, com o intuito de evocar, em reminiscência velozmente fugaz, a doçura da vida. E assim ele vai administrando a pequena quantidade, em doses lentas e sofridas, desejando que o inferno acabasse antes que a lata ficasse vazia. Mas já sabemos o final da história. E ele não é feliz.
Já o pijama listrado, azul e branco, era como a mistura entre céu e nuvens que eu via pela janela do alojamento. Suas cores me fizeram pensar nas fotografias históricas, em que tudo aparece em preto e branco: o campo, a vegetação, os barracões insalubres e os corpos esquálidos dos prisioneiros, dentro dos pijamas surrados. Nessas fotografias tudo parece irreal (como a beleza de Praga vista através das lentes de óculos escuros), justamente porque faltam as cores.
O cenário real era colorido e isso era absurdo para mim. Me aproximei da janela e respirei com urgência. Saí do alojamento, caminhei sobre o trecho gramado. Ouvi o farfalhar das árvores naquele silêncio sagrado.  E imaginei a movimentação dos homens escravizados, a mancha vermelha de sangue na roupa de um, a marca amarelada de vômito nas calças de outro, as listras azuis, perdendo matizes, mas sempre azuis, mesmo que desbotadas. Imaginei a cor de cada olho aterrorizado pela ameaça da morte. Imaginei o tom de cada pele marcada pela dor. Era absurdo para mim que o inferno pudesse ter existido sob um céu de verão, com árvores reverdecidas. Para mim era absurdo saber que no inferno pudesse ter soprado um vento assim.
Fui ficando cada vez mais grave. Entrei numa sala de azulejos brancos, que mais parecia um açougue. Presas ao chão, também com acabamento de azulejos brancos, havia três mesas de autópsia, tão assépticas que era difícil acreditar que nelas corpos de gente tinham sido dissecados. No subsolo havia uma sala ampla e gelada, como um frigorífico. Deduzi que ali tivesse sido uma espécie de morgue, depois me ocorreu que era uma câmara de gás, por causa dos arranhões nas paredes ( seriam marcas de unhas, como as que há em Auschwitz?)  e de tubulações que vinham de um lugar desconhecido. Por fim, parei de fazer especulações e dei o fora dali. Era esquisito demais.
Segui para a área de execuções, dei uma volta pelas ruínas do crematório. Visitei um dos barracões que era destinado às prisões e outro, onde ficavam os horripilantes mictórios e salas de banho.
Saí de Sachesenhausen envelhecida. E me lembrei de Primo Levi, quando afirma que a experiência traumática das vítimas dos campos de concentração é inenarrável, porque há uma incompatibilidade simbólica entre o universo concentracionário e a vida do lado de fora. O que houve ali foi tão absurdo, que não cabe em nossa linguagem.
Saí de Sachesenhausen pensando no que há de maldade no humano, na perversidade de um sistema capaz de engendrar esquemas de morte administrada.
No entanto, quando atravessei o portão ornamentado com a virtuosa mensagem sobre a importância do trabalho em nossas vidas, ainda pude ter fé em nossa espécie: o ranger incessante das dobradiças, provocado pelo entra- e -sai dos turistas me fez lembrar de que o abrir e fechar daquela grade assombrosa hoje só é possível porque muitos colaboraram para que os campos de concentração fossem desativados para sempre. Há a maldade, há a bestialidade. Mas há também bondade no humano.
O museu está lá, refrescando nossa memória, para que não se repita a catástrofe.


As dobradiças do portão de  Sachesenhausen Concentration Camp ainda rangem no meu sono.

domingo, dezembro 01, 2013

Fico sempre
cheirando a tabaco.

Sempre linda
aquela sua luz úmida.

(Vasta maré fertilizante
se derrama)

Fogo incendiando
rastros de sax.

Aprender as tardes.
Abrasar este coração despetalado.
Arrebentar em cores.

Sempre linda
aquela sua luz
úmida.

Restos de sax.
Fico sempre
cheirando a tabaco.

terça-feira, novembro 26, 2013

Ventos brutais

Me sentia cansada 
ante as nebulosidades.
Quando a chuva me delira
Troco de temperaturas.

Absurda
como voltar cantando as serpentinas de um funeral
uma pétala aconteceu
enquanto um blue ruminava
monótono dentro da casa.

Os raios de um fascínio
que se descolore
Flores que ardem nos olhos
mas são como o gosto
e
escapam.

quinta-feira, novembro 07, 2013

Jardinagem


A cor roxa
engole a clorofila.

Coração- Magoado
é o nome de uma planta.
( O arbusto toca o chão, 
é puro peso)

Folhas verdes também têm
hematomas.

A Dormideira se recolhe
à ameça do meu toque.

( Ramos e ramos
carregados de pavor)

Folhas verdes também
gelam de medo.

Me deito
sobre o sumo
desses caules decepados.

Permanecerei aqui
imóvel.

A música explosiva
das Flores-de-Trombeta.

sexta-feira, setembro 20, 2013

Distraídas astronautas

O céu sempre me pareceu
tão masculino
todo azul
e com um deus morando  dentro

( segundo as narrativas da mãe
quando eu ainda era o inchaço em seu ventre
e captava sussurros
pelas viscosidades da placenta).

Um deus de barba branca
no trono- ela dizia.
Trovejante voz paterna
ordenando o alternar dos dias
e das estações e dos tons de azul
do céu
que sempre me pareceu tão masculino
Porque lá tinha um trono.
Porque lá tinha uma ordem.
Porque lá tinha um grito.

Mas então vem a lua
e um império inteiro desaba.
Odores de fêmea
umedecem os ares.

A lua, inchada
como a barriga da mãe
quando me contava mentiras

A lua, pálida ou vermelha
ou quando a sombra ameaça
sua estranha claridade.

E de perto ( bem de perto)
-Por dentro-
Uma profusão de chagas escancaradas
Crateras
sobre as quais
distraídas astronautas
de tempos em tempos
 vêm pisar
alargando feridas
fincando bandeiras
enlouquecendo
Para, em seguida,
Desaparecerem para sempre.

quinta-feira, setembro 19, 2013

Vagão

Nesta noite
não te amarei em Singapura
entre as cores da Pequena Índia
e o cheiro que falta
à profusão de perfumes.

Nesta noite
não te verei em Andrômeda
aprisionada em
azuladas bordas de estrelas velhas.

Nesta noite
não te verei em Guadalupe
embora insista em extrair
rosas das pedras.
O que umedece em mim
não são os meus olhos.

Nesta noite
não te verei na Praça 7
onde é negra a roupa da juventude.
Rodinhas de skate deslizam
em poças de urina
e no meu sonhar todos os teus lábios.

Um pássaro grita dentro de mim.
afundas, indiferente,
na irreparável treva do nunca.

quinta-feira, agosto 15, 2013

Os livros

 Os livros I

Era mil novecentos e oitenta e alguma coisa.
A criança que fui irrompeu, certa tarde, nos interiores da biblioteca da escola, fugindo de uma tempestade de granizo.
Esbaforida. Sã e salva?
Assustada.
Foi como entrar em universo paralelo.
E lá estava o livro. De capa dura, cinza talvez. Ou azul? Era cor fria, única certeza.
Abri-o. O que contava, como se chamava, se perdeu no tempo.
Me encantei para sempre.
Quis o livro para mim.
Mas não pude levá-lo para casa, nem emprestado. Não permitiram.
Fiquei, por isso, por dias, em estado de letargias de paixão.

Então o pai,que trabalhava carregando nas costas pesadas caixas de mercadorias, me disse que tinha um livro para mim.Que tinha pedido ao dono da livraria quando foi fazer uma entrega lá.
Só que o pai era esquecido e me enrolou por dias. ( Meses? Séculos?).
Mal sabia ele que a espera me adoeceu novamente.
E todas as noites em vez de abordá-lo no portão de casa procurando pelas balas chita que ele sempre nos trazia, eu perguntava pelo livro. No meu sonho o livro que eu ganharia era o mesmo da biblioteca, que tinham me negado, na tarde em que choveu gelo.

Certa noite o pai chegou bêbado, como sempre, com os bolsos repletos de balas, como sempre, cheirando a tabaco, como sempre e com um milagre nas mãos. Meu livro!
Para minha decepção, obviamente o livro não era o mesmo do meu desejo.
Mas chovia e eu estava só e com frio.
O milagre estava feito.

Os livros II

Mil novecentos e oitenta e alguma coisa outra vez.
Sandra Almeida morava quase em frente à minha casa e tinha uma mina de ouro lá: a coleção inteira da Série Vaga-lume. Só que a mãe da Sandrinha não gostava muito de visitas de crianças, então eu nunca tinha entrado na casa dela e por isso nunca tinha chegado perto da mina.
Mas, numa tarde bonita, a Sandrinha apareceu no portão ( de onde, todos os dias, ela acenava para mim) e me chamou.
" Simone, minha mãe foi ali. Vem pegar os livros que você quiser"

Entrar na casa da Sandrinha foi uma aventura. Mistura de duas sensações: a adrenalina que deve dominar o corpo de ladrões de banco,em plena operação e o medo de ser surpreendido que deve sentir uma pessoa que decidisse trepar na cama da mãe enquanto ela tivesse ido à padaria comprar fermento.
Eram três pilhas de livros, todas mais ou menos da altura que eu tinha na época, ou seja, um metro e alguma coisa.
Impagável sentimento de felicidade!

Os livros III

Eita década de 80! Volto a ela mais uma vez.
Estava em casa, voando em espaçonave de madeira recentemente inventada ou conversando com gatos?
A vizinha chamou. Tinha jogado um saco de livros no terreno baldio em frente. Disse que só depois havia se lembrado de que eu gostava de ler e de que os livros poderiam me agradar.
Saí em disparada ( em queda livre diretamente do planeta explorado ou deixei um gato , coitado, falando sozinho?)

Na vida real, eu era um pássaro sujo, esfarrapado. Sempre andava descalça.( Não tinha dinheiro para comprar chinelos...)
Foram anjos que sempre protegeram meus pés dos cacos de vidro daquele lote vago, transbordante de entulhos? Lá era minha segunda casa.
Os livros da vizinha estavam lá. Era um saco pesado. Tive de levar pra casa em três remessas.
Eu era, quase literalmente, um pinto no lixo.

Às vezes dói lembrar de que, durante grande parte da vida, foi dos restos dos outros que me nutri.
Até dos restos de livros, meu deus!
Até dos restos de livros...

segunda-feira, julho 22, 2013

Sexo,morte e cores

Bebi um litro de cerveja.
Tirei uma foto da lua.
Em seguida, música, no volume máximo; canções de há muitos anos atrás.
Na sala escura, coisas girando e livros, à esquerda, me espreitando da estante. Livros ao redor, desde sempre. Presentes mágicos de não sei quem para mim.
Me sentia absurdamente feliz.
Seria a nova pintura da casa?
Três coisas em que acredito: em sexo, na morte e nas cores.
Amém.

quinta-feira, junho 06, 2013

O silêncio que antecipa a morte

Pouca gente sabe, mas o Tarkovsky é meu cineasta favorito.
Soube de sua existência há uns bons anos, quando alguém iniciou a exibição de Solaris na sala da casa de um amigo, onde eu me encontrava. Não é preciso dizer que a lentidão da narrativa provocou protestos e o filme foi rapidamente substituído por um blockbuster, bem mais ao gosto dos adolescentes que éramos.
Anos mais tarde ouvi de novo seu nome. Foi numa loja de DVDs: Raquel me deixou intrigada ao me contar que o primeiro e o último longa deste gênio terminavam praticamente do mesmo jeito, com cenas finais muito parecidas, como se um círculo estivesse sendo fechado. (Os filmes são A infância de Ivan, de 1962 e O sacrifício, de 1986, respectivamente).
Mas o que mostram ambas as cenas finais? Também fiquei curiosa e foi por esse motivo que comecei a assistir aos filmes dele. E quis começar pelo começo, seguindo a ordem cronológica das filmagens. Então minha iniciação no assombroso mundo de Tarkovsky não se deu com o primeiro longa, mas com um média metragem que veio a público antes: falo de O rolo compressor e o violinista, de 1960. Só assisti ao belíssimo A infância de Ivan um pouco mais tarde, e pude assim matar minha curiosidade: a cena final, à qual me referi acima, mostrava uma criança (Ivan, o protagonista), deitado sob uma árvore.
Mas não se enganem: não saí desesperada em busca do último filme para me certificar se nele a cena final do primeiro se repetia de verdade na imagem derradeira. Eu estava seduzida, e queria assistir a todos os outros; meu desejo tinha mudado de rumo.
Tive de adiar o Andrei Rublev,( que seria o próximo da lista) por dois motivos: a péssima qualidade da imagem do arquivo que baixei na internet e as mais de três horas de duração da película, às quais, infelizmente, naquele momento, minha rotina movimentada não me permitiria me dedicar. Mas segui vendo Solaris (1972), O espelho (1974), Stalker(1979), Nostalgia (1983) para, enfim, chegar ao último, O sacrifício e ver o tal menino, debaixo da tal árvore, na tal cena final, como no longa de estreia. Mas essa curiosidade boba, que a principio tinha me provocado, acabou perdendo todo o sentido depois que entrei efetivamente na gravidade do universo úmido de Tarkovsky.
II
Tarkovsky me assombra. Como poucos conseguem fazer. Como um Pasolini o faz, por exemplo, em Teorema (filme que nos desnuda em plena aridez desértica e nos fere com um réquiem de Mozart, imprimindo em nossos corpos as absurdas dimensões da ausência); ou como um Bergman, em Sonata de Outono, que nos sufoca com o jorro de tanta mágoa desentranhada. (A última vez que saí do cinema tonta de perplexidade foi há mais de um ano, quando assisti ao inquietante Cavalo de Turim, de Béla Tarr).
Estava com saudades desse assombro.

III
Então chegou o feriado de Corpus Christi, um dia bem frio. Embora eu tivesse um monte de coisas para fazer, resolvi deixar tudo de lado; decidi me enroscar em cobertores felpudos e passar toda uma tarde assistindo ao Tarkovsky que me faltava: Andrei Rublev, o filme de mais de três horas, aquele que em outra ocasião eu tinha deixado para depois.
IV
Andrei Rublev foi um monge russo de verdade. Viveu na Idade Média. Pintava quadros. Era talentoso.
Nada mais banal.
O que me encanta no Tarkovsky é a sua genialidade alquímica, capaz de transformar o que serviria apenas como material para a comportada biografia de um homem religioso em uma profunda reflexão sobre a dúvida: a perda da fé nos preceitos cristãos, a desconfiança em relação ao caráter representativo da arte e da linguagem e a descrença na organização social.
Ao longo das mais de três horas de Andrei Rublev assistimos ao dilaceramento do herói: do lado de fora do mosteiro onde passou grande parte da vida, ele se encontra com uma realidade muito diferente da experimentada até então.
 Rublev viaja à Moscou, com o objetivo de atender ao convite que recebera, para pintar o interior de uma igreja, onde deveria representar as cenas do Juízo Final. O choque com a realidade é marcado por decepções, que já se iniciam em sua trajetória. Logo no início da viagem, Rublev e seus companheiros de trabalho presenciam o assassinato de um grupo de pagãos, por cavaleiros da fé. As atrocidades são, portanto, cometidas em nome de Deus, nome sagrado que Rublev, até então, acreditava ser um sinônimo para amor.
Já em Moscou, o monge tem sua primeira crise criativa. Começa a duvidar do caráter representativo da arte. Superada a angústia, pinta. No entanto,  em seguida, vê tudo o que criou sendo destruído pela violência da barbárie levada pelos incendiários tártaros, que invadem a cidade, estuprando mulheres e matando homens e animais.
Nas cenas de invasão, o grau de absurdo da crueldade e da violência é levado ao extremo quando as vitimas são animais: impossível não demonstrar repulsa, por exemplo, na sequência em que um cavalo é ferido e cai de uma estrutura de madeira, quebrando as pernas. Assistimos à sua insistência, às suas vãs tentativas de erguer-se e ficamos pasmos quando um figurante atravessa friamente o peito do animal paralítico com uma lança. (O olho revirado do cavalo morto é, para mim, a imagem do absurdo). E há também a terrível cena em que alguém ateia fogo em uma vaca viva.
Foi com esse mundo de violência que Rublev defrontou-se (mundo que contradizia a Palavra de Deus registrada nos livros e tantas vezes proferida nos rituais litúrgicos do mosteiro...). O herói atinge o ápice da absurdidade quando, para proteger uma mulher meio idiota (a Muda Santa) de um estupro, mata seu agressor.
Sentindo culpa, transtornado e decepcionado, o protagonista experimenta o fel do desespero. Seu olhar escurece e passar a ser sempre uma pergunta pelo Sentido. Sem obter respostas, ele decide interromper seu fluxo criativo: para de pintar por não acreditar mais que a arte possa ressignificar o que quer que seja; enfim,o caos não pode ser ordenado. Além disso, ele se cala. Seu voto de silêncio é resultado da perda da fé no poder da palavra como elemento de comunicação entre os homens.
Estamos diante de um herói em crise. Então avançamos para a narrativa do ato final, denominado “O sineiro” que me deixou toda arrepiada. (O filme é dividido em atos, como uma peça teatral).
Eis um resumo: Rublev está silencioso, há dezesseis anos. Então, os cavaleiros do príncipe saem à procura de alguém que domine as técnicas da feitura de sinos. No entanto, todos os especialistas estavam mortos. No povoado vizinho só foi encontrado Boriska,  filho de um dos sineiros falecidos. O rapaz afirma conhecer o segredo para a modelagem de bons sinos e acaba convencendo os cavaleiros a levá-lo com eles. O rapaz havia mentido: não sabia de segredo nenhum. E o pior: Se ele não tivesse sucesso na empreitada, sua cabeça seria cortada.
Boriska representa o gênio criativo, autodidata, impetuoso, cujo coração enfurecido transborda confiança em si mesmo. Boriska acredita na arte que faz. Mesmo não conhecendo o manual, o “segredo” dos sineiros, ele conclui o trabalho  que lhe haviam incumbido. Seu sino badala e sua cabeça se mantém presa ao pescoço.
A força criativa de Boriska comove Rublev, que tudo observa. E após tantos anos de silêncio, o monge fala. Ambos se aproximam, se adotam e seguem juntos, Rublev pintando e Boriska fazendo sinos...
Eu não chamaria isso de final feliz, porque o processo todo é tão sofrido, que nos últimos minutos do filme os personagens ( Rublev e Boriska) têm o aspecto de soldados famintos que passaram meses em trincheiras. Mas há uma positividade que me agrada. Há uma revolta contra o sem sentido do mundo, contra os absurdos que nos deixam cabisbaixos, desesperançosos. Há uma força contrária à resignação.
E há, sobretudo, as vozes da arte se opondo e se sobrepondo ao silêncio que antecipa a morte.
Pouca gente sabe, mas o Tarkovsky é meu cineasta favorito.


sexta-feira, maio 24, 2013

A Rua dos Eucaliptos



Na Rua dos Eucaliptos
existia um lago
onde nosso Bêbado Pai pescava
peixes desnutridos

Nosso Bêbado Pai
escorregando no capim molhado, certa vez...
Nosso Bêbado Pai rolando rumo ao lago lamacento.
E nossos olhos desbotados de pavor.

Mas ele era homem de muitas espertezas.
Driblava quedas.
Se safou de um belo banho
e ainda riu de nosso desespero.

Na Rua dos Eucaliptos
morreu nosso primeiro gato
quando atravessava, distraído, a poeira da
pista acidentada.

E agora que crescemos
todos estão mortos,
nosso gato
nosso pai
e tantos outros.
Um resto de inocência
agoniza
sob a pesada roda
de um caminhão.

domingo, maio 05, 2013

Variadas categorias de folhas jovens, verdes ainda, precocemente fenecidas

 Descendo a rua Espírito Santo ( era sábado à tarde), eu me sentia frágil e só. A tosse chata, resto da gripe da semana passada, tornava rouco o meu cansaço. Parada no sinal vermelho, eu respirei fundo, como quem desiste.
Os outonos me deixam sensível, eu sei. ( Se fosse verão, eu seria fúria, bola de fogo incendiando  rastros de pólvora em meio ao tráfego. Se fosse verão eu seria forte, se fosse verão, eu seria estrondo).
Eu me sentia frágil e só e o Dave Matthews, cuja voz peculiar estava, naquele segundo,sendo atravessada por melancólica melodia de um saxofone tão Dave Matthews, amolecia os ossos da caixa de ossos que guarda meu coração.
Era sábado à tarde e eu me sentia frágil e só. E meu coração aninhado em morada umedecida por música.
Não obstante o sol de duas horas da tarde, havia alguma coisa quase gelada nas partículas que deviam flutuar lá fora, junto com o vento. E junto com o vento flutuavam  muitas folhas velhas e também variadas categorias de folhas jovens, verdes ainda , precocemente fenecidas.
Eu me sentia frágil e só e tossia o resto da gripe da semana passada.
Eu descia a rua Espírito Santo tão líquida por dentro, e as partículas quase geladas e o sol das duas da tarde...
E as variadas categorias de folhas jovens,  verdes ainda, precocemente fenecidas.
Tudo tão bonito e triste ao mesmo tempo.
E meu coração bradou, sufocado por melodias de sax, exigências absurdas como , por exemplo, viver para sempre.
Eu estava frágil e só e com tosse. Um cansaço rouco retumbava em meu peito.









domingo, abril 28, 2013

Sobre tardes de domingo e portas fechadas


Houve um tempo em que os domingos me deprimiam. Isso foi quando eu era mais jovem e vida para mim era equivalente a agitação. Domingo era morto demais, dia estacionado no tempo, sem gente, sem som, sem sentido.
Atualmente costumo passar os domingos dentro de casa descansando, porque trabalho muito durante a semana. Domingo virou meu refúgio, minha fuga do mundo. Quando muito, vou até a esquina pegar o almoço. Tarde de domingo passo dentro de livros, dentro de filmes, ou dentro de sonhos, entre um cochilo e outro.

Mas hoje saí. De tarde. O céu estava muito bonito, azul sem nuvens e havia aquela luz de outono que sempre me provocou saudades de coisas que não existem, saudades de uma beleza sem nome. Não havia trânsito, nem de pessoas, nem de veículos, como geralmente acontece nos domingos. E de dentro do meu carro eu percebia a ausência do som e de agitação, e sentia uma paz estranha que, não sei porque, me transmitiam todas aquelas portas fechadas.
As portas fechadas e a calma esquisita que se misturava à atmosfera azul e fria sob a luz outonal.
Antes, quando eu era mais jovem e era domingo e tudo estava parado, a falta de sentido impiedosamente me esbofeteava o rosto. 
Hoje, a tarde de domingo com suas portas fechadas, por segundos, fez com que eu me sentisse plena.

Proust e o amor; eu e a solidão

Marcel Proust escreveu que o amor é uma doença incurável. Concordo, em partes. Durante a vida somos acometidos por ele, que só muda de vetor:As pessoas por quem nos apaixonamos são esses vetores,que fazem a doença ( que tem intensidades variadas, como a influenza) despertar em nós.
Mas acredito que contra o amor vamos ficando também imunizados, como acontece com algumas doenças virais. Quanto mais forte é uma crise, mais a gente poderá estar protegido na próxima. Para sobreviver àquelas dores todas, vamos criando resistência e fabricando algumas grades e cercas eletrificadas em torno de nós.



Mas solidão não tem jeito. Solidão é doença mais grave que o amor, sem cura, sem a esperança auto-imune. Ela começa ainda na infância,quando tardes de inverno nos surpreendem brincando sozinhos no quintal de casa, entre cães doentes e gatos desnutridos.   Quando há as ausências do pai( que foi embora) e da mãe que , de cansaço, desistiu.

E depois, vai se alastrando, percorrendo as veias, misturando-se ao sangue e toma conta da pele inteira. E o coração, despetalado, se contorce todo em ferida sempre viva e aberta.
Depois tudo escurece: o sangue, as veias, a pele... E, como consequência, os olhos ficam cheios de sombra e úmidos, sempre, sempre...
Sim, há defesas para o amor, mas não para a solidão. Ela sim, é doença incurável.

terça-feira, abril 09, 2013

"Killing an Arab"









I
Não, eu não era adolescente quando ouvi The Cure pela primeira vez. Acho que tinha uns 8 anos, lá pela segunda metade dos idos anos 1980 ou início dos anos 1990. E devo ter ouvido no rádio de algum vizinho, porque em casa, o único equipamento de tecnologia que havia era uma televisão com imagem em preto-e branco. Provavelmente devo ter ouvido Friday i'm in love e Boys don't cry,  canções que, na época, tinham conquistado as massas, revelando uma faceta  menos depressiva da banda, em relação  àquela de álbuns anteriores, dos quais   Pornography é um excelente exemplo.


Mas não se enganem. Não passei o resto de minha infância e minha adolescência toda ouvindo The Cure , chorando e batendo a cabeça na parede. Só chorando e batendo a cabeça na parede porque, confesso, naqueles tempos, o Cure me passou despercebido. Creio que porque eu era ainda uma criança e ainda não tinha  organizado minha angústia em linguagem.

Voltei a ouvir o Cure bem depois, lá pelos 18 anos, época em que eu  já gostava absurdamente dos livros e me sentia realizada ao pedalar para longe de casa, sozinha, principalmente quando era domingo, fim de tarde e outono. Nessa altura , meu salgado muro de lamentações já estava bem encharcado: enfim, eu  já estava, há  18 anos, carregando um buraco no peito. Não é fácil. Para ninguém. Coisas da vida de quase todo mundo. E eu tinha lido Camus, que  havia incutido em meu coração uma tristeza trágica e, ao mesmo tempo,  uma vontade insuportável de beleza.
Nesse contexto, apareceu um sujeito completamente maluco, que conheci no Segundo Grau. O Cara me falou do Cure. E me fez ouvir o Cure. E me contou que a canção Killing an arab era uma referência ao Estrangeiro, do Camus, livro que era uma das formas como minha angústia estava organizada em linguagem naqueles idos.
Não parei mais de ouvir.


II


The last day of summer
                                                                 
Nothing I am
Nothing I dream
Nothing is new
Nothing I think or believe in or say
Nothing is true

It used to be so easy
I never even tried
Yeah it used to be so easy...

But the last day of summer
Never felt so cold
The last day of summer
Never felt so old
Never felt so...

Como palavras tão tristes podem agradar alguém?


Um dos integrantes do Joy Division , o Bernard Summer, define assim o "Rock Gótico":  "Uma atmosfera maléfica, mas você se sente à vontade dentro dela"

É isso. É como assistir a um filme expressionista. 
É como sofrer com Proust a ausência de Albertine e, a cada página, constatar  que o tom elegíaco de sua confissão é o mesmo que rege  minha sinfonia de perdas. E meu desejo de Impossível, como em "To Wish Impossible Things"


remember how it used to be
when the sun would fill up the sky
remember how we used to feel
those days would never end
those days would never end

remember how it used to be
when the stars would fill the sky
remember how we used to dream
those nights would never end
those nights would never end

it was the sweetness of your skin
it was the hope of all we might have been
that fills me with the hope to wish
impossible things

but now the sun shines cold
and all the sky is grey
the stars are dimmed by clouds and tears
and all i wish
is gone away
all i wish
is gone away

all i wish
is gone away



II

Fui ao Show do Cure no sábado, 6 de abril, na Arena Anhembi em São Paulo. O espetáculo durou três horas e vinte minutos e foi maravilhoso. Robert Smith está envelhecido, mas seus cabelos grisalhos e ainda mais desgrenhados e a boca enrugada pintada de batom provocaram em mim uma simpatia extra:se não fossem  as pálpebras maquiadas em preto ele seria, hoje, a cara da minha mãe!
40 músicas ao todo, desde sucessos radiofônicos mais comerciais, como  Friday i'm in love, do álbum Wish, a canções de sua fase mais sombria, com as presentes em Pornography foram entoadas como hinos religiosos, por uma multidão de mais de 30 mil pessoas. Um delírio.
A princípio o show aconteceria no estádio do Morumbi, mas foi transferido para a Arena. Me lembro que na ocasião da alteração, fiquei meio desesperada porque precisava cancelar a reserva do hotel que antes me atenderia e procurar por outro, mais próximo do local do evento. Encontrei um de onde daria para ver o show da janela.  Quando hesitava se reservava logo ou não um quarto  , um querido colega de trabalho me disse: " Reserva logo, porque senão os outros adolescentes vão todos pra lá e vão esgotar as vagas  e você vai ficar sem".
O colega estava me sacaneando, obviamente, pois  não sou adolescente. Já até passei dos trinta!
Mas...
Eu queria mesmo que o The Cure fosse uma banda que adolescentes de hoje escutassem. Queria que esses meninos e meninas pudessem  experimentar essa beleza toda que passa a existir quando letras tão líricas se harmonizam com melodias ora introspectivas e melancólicas, ora agressivas, gritando o ódio que se sente por um mundo onde o amor parece estar morrendo. Queria que eles aprendessem a  transformar experiências em linguagem.

Imaginem  quão belo seria  ver uma multidão  de crianças evocando, num refrão, uma das cenas mais icônicas da literatura, que é aquela em que, num gesto absurdo, sucumbindo ao sem sentido do mundo, de pé diante de um homem na praia, Meursault, ofuscado pelo sol, aperta o gatilho, em O Estrangeiro, de Camus?

To Wish impossible things.



quarta-feira, março 20, 2013

Eu sei

Eu sei
ousei flertar com claridades
mas sou filha do breu
e agora me recolho
barroca e contorcida

(Oh, minhas frágeis asas de cera
e um Verão inteiro em minha cama, ardendo)

Não quero a Lua lasciva
inchada de beleza e horror

( ah, essa adorável música de loucos....)

Não quero a saudade do mar
Não quero  misérias de amor

(Oh, minhas frágeis asas de cera
e um Verão inteiro em minha cama, ardendo)

Em meu desejo, deusas, despudoradas, desfilam.





quinta-feira, janeiro 17, 2013

Letícia

Letícia só tem dois anos e me pergunto: como pode caber tanto sofrimento numa pessoa tão pequenina?
Ela estava sentada ao redor de uma mesa de biblioteca, ouvindo histórias. Os olhos úmidos e a voz rouca denunciavam o choro de uma manhã inteira.
Não de muito longe, eu observava seu nervosismo, sua tensão e a inquietude em seus olhos.
Letícia, pequena, inquieta e triste.
Então uma caixa grande, com lápis de todas as cores, foi colocada sobre a mesa.
Mas Letícia não quis saber deles. Preferiu um vidro de cola, que foi aberto sem querer por suas mãos impacientes, o que fez com que o conteúdo se espalhasse por todos os lados.
A garota lidou com o acontecimento como os nervosos lidam com as tragédias: inflou pulmões, vibrou cordas vocais e explodiu num choro gritado e contínuo, enquanto apertava os olhos entre as pálpebras encharcadas e ficava vermelha como uma pimenta brava.
A avó até que tentou fazer a menina parar de chorar, mas em vão. Não, as flores lá de fora não eram belas o bastante para compensar a tristeza de Letícia, e  nem era suave o canto dos pássaros que estavam separados de nós por um pequena distância, reforçada pelo vidro das janelas.
Letícia, tão inconsolável. Por quê?
Meu coração se encheu de ternura. Me aproximei um pouco e experimentei lhe oferecer um lápis azul. Ela não quis.
Então resolvi fazer cena: quebrei a ponta do lápis e dei início ao meu drama:
_ Meu Deus! A ponta do lápis quebrou! E agora? Como vou colorir meu desenho? E agora, Letícia?
Ela de repente se calou e seu olhar, de forma surpreendente, acolheu meu apelo, como se ela entendesse a  dor que eu fingia.
_ E agora, Letícia? E agora?
Ela chegou muito perto. Olhava com gravidade, ora para mim, ora para meu lápis ferido.
Um menino, que estava por ali acompanhando a performance, disse que tinha a solução para meu problema. Um apontador!
Continuei fingindo, dessa vez exultante:
- Um apontador, Letícia! Ele tem um apontador! A gente vai poder fazer a ponta nascer outra vez!
Dizendo isso, comecei a  apontar o lápis, me deliciando com a força de encantamento que nem eu mesma sabia que tinha. Letícia não desgrudava os olhos dos movimentos de minhas mãos, como que enfeitiçada.
- Letícia, olha! A ponta nasceu de novo! Agora posso colorir meu desenho! Ela estendeu as mãos. Queria pegar no lápis, queria tocar no milagre.
Então ela voltou para a mesa e fez um desenho.
Silenciosa, ela era toda rouquidão.

2

Quando eu estiver triste, triste de não ter mais jeito;quando eu estiver triste e sem Parságada para onde ir; quando meus potes escaparem de minhas mãos e meus sonhos se sujarem de terra; quando eu estiver chorando, quando eu estiver gritando, eu desejo que venha alguém, mesmo que minta, eu desejo que venha alguém e faça nascer outra vez a ponta azul do meu lápis de colorir.


terça-feira, janeiro 01, 2013

Diários e fins de ano

Quando eu era adolescente gostava de anotar minha vida em diários. Guardo comigo muitos deles, num saco plástico, no fundo do armário.
E era regra:  na última página , a do dia 31 de dezembro, eu registrava uma espécie de balanço anual, com retrospectivas e avaliações.
Tentei manter tal hábito na vida adulta, mas fracassei. Ou melhor, continuo fracassando,pois ainda insisto em comprar , a cada início de ano, uma nova agenda, que logo abandono.
Minha agenda-diário do ano que acabou de acabar só foi rabiscada até o mês de maio. Depois disso as anotações que há nela se resumem a lembretes de reuniões chatas de trabalho e de tarefas mecânicas. 

Mas vamos ao que ficou na memória,  não necessariamente em ordem cronológica, com ou sem anotações:


Terminei o Proust ( que ainda reverbera dentro do meu corpo e acho que isso vai ficar acontecendo até o meu último dia de vida nessa bosta de mundo que de vez em quando é tão bonito que chega a doer).

Reclamei até: de problemas conjugais dos mais variados; de menstruação, de cólicas e de outras dores do feminino; do trânsito; da falta de tempo pra ser feliz, por causa do trabalho.
Assisti a filmes, mas como não anotei, não me lembro de todos. Nada que me fizesse ficar chapada. Vi muitas coisas dos primórdios do cinema: Lumières, Meliès, Griffith. Vi Cabíria, O grande roubo do trem, essas coisas. Vi também uma dezena de filmes do Hitchcock e descobri que é muito mais divertido procurá-lo em seus filmes do que procurar o Wally no meio da multidão desenhada naqueles livros infantis. E por falar em Wally, vi Medianeras e achei uma fofura.( Quando fui à Argentina, entrei naquele planetário e foi lindo).

Em maio fui ao Chile. Visitei Santiago, subi cerros, caminhei pela 


Alameda, comi deliciosamente frutos do mar no mercado central da cidade. Fui à Cordilheira dos Andes, fiz guerra de neve,tirei fotos lindíssimas, dormi num quarto com calefator, fui à Viña del Mar, onde mergulhei meus pés, com tênis e tudo, no gelado Pacífico e caminhei com Raquel por praias maravilhosas. No mesmo dia partimos para a exótica Valparaíso, a cidade dos curiosos astensores, que levam para os cerros em profusão. Fomos de ônibus a uma das casas de Neruda, na parte alta da cidade, de onde se vê o porto lá embaixo e barcos indo embora. Na estação de ônibus, quando esperávamos para retornar a Santiago, Raquel sorriu para mim, enquanto tomava um café-expresso. Fazia frio. E o sorriso dela me fez sonhar  com o quarto, com a noite, com os cobertores e com o corpo dela  dando sentido à existência do meu.


A viagem acabou. E com ela, as férias. E ao retornar fui surpreendida pela ameaça da perda, quando ao visitar minha mãe encontrei-a em meio a uma crise respiratória, agravada por um forte resfriado, um enfisema  pulmonar  e sinais de insuficiência cardíaca.Os dias que se seguiram foram os piores do meu ano. Foi uma semana inteira de enfermaria, vendo minha mãe enfraquecida ( ela que sempre foi meu exemplo de força), nervosa, brigando comigo quando eu fechava a porta do banheiro , ou diante de minha excessiva preocupação com a borracha do soro, que ela arrancava toda vez que se levantava.
Depois ela voltou para casa e foi minha vez de ficar doente: a pior gripe da minha vida, até hoje. Dias sem pronunciar uma palavra, por causa da afonia. Provavelmente resultado das noites de vigília naquela enfermaria gelada. Foi a parte do ano em que mais tive medo.
Depois passou. E maio, finalmente acabou.

Li muita poesia. Pizarnik e Backer chegaram para mim da Colômbia e da França, respectivamente.

Quase não li quadrinhos. ( Um Moebius, foi o que li de melhor). E Li Lucille também. Ah, e teve a  HQ Vó, do Jean, que a Raquel me apresentou e pela qual me apaixonei.
Não vi nenhum Bergman. Vi um Ozu. As melhores coisas que li: As ondas, da Virgínia e A caixa preta do Amóz Oz. Não li os meus Lobos Antunes que me aguardam na estante. E tem também uma coleção inteira da Virgínia me esperando.
O fato é que a seleção do Mestrado deste ano me privou de muitas leituras e de muitos filmes...Mas no fim deu certo.
Fui ao show do Morrissey. A acústica estava péssima, decepcionante... Fui ao show do Bob Dylan e fiquei emocionada com a energia daquilo. Fui ao show do Kid Abelha e desejei chegar aos 50 com as pernas da Paula Toller. Fui ao show da Shirley King e descobri que alegria é possível.
Visitei Buenos Aires. Entrei no planetário do filme Medianeras. Explorei a cidade  a pé, com Raquel, a infatigável,  do Boca ao Palermo. Numa dia de briga, comemos bondiola de cerdo con papas, tomamos vinho e voltamos bêbadas, felizes e reconciliadas para o hotel.
Ouvi blues o ano inteiro.
O trabalho continua sugando a poesia da minha vida. 
Mas a música traz a poesia de volta.
Por isso, bem no finzinho do ano, comprei uma gaita.
E como os negros do Delta do Mississippi eu vou cantando pra suportar as tristezas.

Que venha 2013!