I
Não, eu não era adolescente quando ouvi The Cure pela primeira vez. Acho que tinha uns 8 anos, lá pela segunda metade dos idos anos 1980 ou início dos anos 1990. E devo ter ouvido no rádio de algum vizinho, porque em casa, o único equipamento de tecnologia que havia era uma televisão com imagem em preto-e branco. Provavelmente devo ter ouvido Friday i'm in love e Boys don't cry, canções que, na época, tinham conquistado as massas, revelando uma faceta menos depressiva da banda, em relação àquela de álbuns anteriores, dos quais Pornography é um excelente exemplo.
Mas não se enganem. Não passei o resto de minha infância e minha adolescência toda ouvindo The Cure , chorando e batendo a cabeça na parede. Só chorando e batendo a cabeça na parede porque, confesso, naqueles tempos, o Cure me passou despercebido. Creio que porque eu era ainda uma criança e ainda não tinha organizado minha angústia em linguagem.
Voltei a ouvir o Cure bem depois, lá pelos 18 anos, época em que eu já gostava absurdamente dos livros e me sentia realizada ao pedalar para longe de casa, sozinha, principalmente quando era domingo, fim de tarde e outono. Nessa altura , meu salgado muro de lamentações já estava bem encharcado: enfim, eu já estava, há 18 anos, carregando um buraco no peito. Não é fácil. Para ninguém. Coisas da vida de quase todo mundo. E eu tinha lido Camus, que havia incutido em meu coração uma tristeza trágica e, ao mesmo tempo, uma vontade insuportável de beleza.
Nesse contexto, apareceu um sujeito completamente maluco, que conheci no Segundo Grau. O Cara me falou do Cure. E me fez ouvir o Cure. E me contou que a canção Killing an arab era uma referência ao Estrangeiro, do Camus, livro que era uma das formas como minha angústia estava organizada em linguagem naqueles idos.
Não parei mais de ouvir.
II
The last day of summer
Nothing I am
Nothing I dream
Nothing is new
Nothing I think or believe in or say
Nothing is true
It used to be so easy
I never even tried
Yeah it used to be so easy...
But the last day of summer
Never felt so cold
The last day of summer
Never felt so old
Never felt so...
Como palavras tão tristes podem agradar alguém?
Um dos integrantes do Joy Division , o Bernard Summer, define assim o "Rock Gótico": "Uma atmosfera maléfica, mas você se sente à vontade dentro dela"
É isso. É como assistir a um filme expressionista.
É como sofrer com Proust a ausência de Albertine e, a cada página, constatar que o tom elegíaco de sua confissão é o mesmo que rege minha sinfonia de perdas. E meu desejo de Impossível, como em "To Wish Impossible Things"
remember how it used to be
when the sun would fill up the sky
remember how we used to feel
those days would never end
those days would never end
remember how it used to be
when the stars would fill the sky
remember how we used to dream
those nights would never end
those nights would never end
it was the sweetness of your skin
it was the hope of all we might have been
that fills me with the hope to wish
impossible things
but now the sun shines cold
and all the sky is grey
the stars are dimmed by clouds and tears
and all i wish
is gone away
all i wish
is gone away
all i wish
is gone away
when the sun would fill up the sky
remember how we used to feel
those days would never end
those days would never end
remember how it used to be
when the stars would fill the sky
remember how we used to dream
those nights would never end
those nights would never end
it was the sweetness of your skin
it was the hope of all we might have been
that fills me with the hope to wish
impossible things
but now the sun shines cold
and all the sky is grey
the stars are dimmed by clouds and tears
and all i wish
is gone away
all i wish
is gone away
all i wish
is gone away
II
Fui ao Show do Cure no sábado, 6 de abril, na Arena Anhembi em São Paulo. O espetáculo durou três horas e vinte minutos e foi maravilhoso. Robert Smith está envelhecido, mas seus cabelos grisalhos e ainda mais desgrenhados e a boca enrugada pintada de batom provocaram em mim uma simpatia extra:se não fossem as pálpebras maquiadas em preto ele seria, hoje, a cara da minha mãe!
40 músicas ao todo, desde sucessos radiofônicos mais comerciais, como Friday i'm in love, do álbum Wish, a canções de sua fase mais sombria, com as presentes em Pornography foram entoadas como hinos religiosos, por uma multidão de mais de 30 mil pessoas. Um delírio.
A princípio o show aconteceria no estádio do Morumbi, mas foi transferido para a Arena. Me lembro que na ocasião da alteração, fiquei meio desesperada porque precisava cancelar a reserva do hotel que antes me atenderia e procurar por outro, mais próximo do local do evento. Encontrei um de onde daria para ver o show da janela. Quando hesitava se reservava logo ou não um quarto , um querido colega de trabalho me disse: " Reserva logo, porque senão os outros adolescentes vão todos pra lá e vão esgotar as vagas e você vai ficar sem".
O colega estava me sacaneando, obviamente, pois não sou adolescente. Já até passei dos trinta!
Mas...
Eu queria mesmo que o The Cure fosse uma banda que adolescentes de hoje escutassem. Queria que esses meninos e meninas pudessem experimentar essa beleza toda que passa a existir quando letras tão líricas se harmonizam com melodias ora introspectivas e melancólicas, ora agressivas, gritando o ódio que se sente por um mundo onde o amor parece estar morrendo. Queria que eles aprendessem a transformar experiências em linguagem.
Imaginem quão belo seria ver uma multidão de crianças evocando, num refrão, uma das cenas mais icônicas da literatura, que é aquela em que, num gesto absurdo, sucumbindo ao sem sentido do mundo, de pé diante de um homem na praia, Meursault, ofuscado pelo sol, aperta o gatilho, em O Estrangeiro, de Camus?
To Wish impossible things.
Um comentário:
Staring at myself, reflect in the eyes of the dead man on the beach...
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