segunda-feira, abril 11, 2016

Caríssima

Caríssima,
o cheiro de merda
sabota a mentira do boulevard:
águas impuras escorrem nesses subterrâneos
infectas
como as bocas dos vermes que roem carnes ricas sob os granitos luxuosos do Bonfim
Caríssima,
já é outono
e nem sequer um vento de alívio
para aplacar a febre dos dias
Ardem meus olhos
Arde o céu, de azul impassível
Meu coração é um tonel de vinho
vazio
Sou animal de volúpia
farejando o elixir
da morte veloz
A vida inteira
fervendo líquidos tóxicos
&
lustrando pedras sem nenhum valor
A vida inteira
decantando o desejo das frivolidades do amor
Caríssima,
Nunca tente fixar meus elementos voláteis
Não desperdice comigo tuas paixões de cobalto.
Vaticinou-me uma sombra
que eu seria toda paladar e olfato.

segunda-feira, agosto 31, 2015

Sombras na Afonso Pena

 O ônibus sempre atrasado.
Entrei, abrindo caminho entre tarados, crentes e jovens tagarelas. Tinha um lugar pra sentar no fundo, mas tava vomitado. Fiquei onde estava. De azedume já bastam as caras de bunda de meus desafetos.
Enfiei a mão no bolso e tirei de lá um pedaço de papel todo amassado. Era uma lista de tarefas: consertar celular, comprar remédio da mãe, comprar meus remédios, ir aos correios.
Ontem fui a casa da mãe. Ela ficou meio incomodada com a largura da minha bermuda, acha mais bonita, pra mulher, roupa justa.
“Fôdas”, mãe (!), quer dizer meu verdadeiro selfie, lá no fundo de meus pensamentos. “Mas, mãe, eu gosto assim”, é o que diz meu falso selfie, para não desencadear o stress do conflito. Ela fala qualquer coisa sobre a vontade que tem de dar socos em sapatões. Na novela das 9 duas mulheres se beijam, acho que foi por isso que ignorou completamente minha condição, ao fazer esse comentário. Falou por impulso, penso. Acho que ela nunca teria intenção de me magoar.
Ela tá com a pele toda sulcada. Toda vez que a vejo o Tempo, pregado na cara dela, me ameaça: “ Você vai perder feio, garota” Ele me diz. “E vai ficar com sequela”.
O tempo é bom às vezes, eu sei. Sem ele a gente cometeria suicídio assim que nosso primeiro gato morresse entalado com a vértebra do peixe.  Mas sua outra face é a de um artista perverso que gosta de desenhar traços profundos na cara da gente e das pessoas que a gente ama. Depois rasga a gente ao meio, com sua caneta pontuda.
Filho da puta duma figa.
O correio fecha às 17 horas e o Tempo, herdeiro primogênito do Capeta, de propósito, está passando com mais pressa. E o ônibus, claro, não poderia andar mais devagar. Dizem que a culpa é de um tal de Murphy, mas sei que é do próprio chifrudo encaralhado.
Quando contei pra mãe que eu era lésbica ela não me deu um soco. Se protegeu do jeito que sabe, com o escudo da fantasia. “Faz de conta que não”, e tudo está bem. Foi assim que ela sempre viveu.
Mas já me bateu, em inúmeras outras situações. Algumas são memoráveis:
1)      Eu tinha uns cinco anos. A rua de casa parecia o solo lunar, tamanha era a quantidade de crateras que tinha. Choveu. Os buracos viraram piscinões. E lá fui eu me banhar na lama. Ela me puxou pelos cabelos. Mãe nervosa era capaz de constranger todos os círculos do inferno.
2)      Mais ou menos na mesma época tentei escalar o armário da cozinha. Ele caiu em cima de mim. Surra de mãe, com cinto pesado de pai.
3)      Eu tinha 16 anos. Queria ir pro enterro de uma tia avó, mãe disse que não. Desboquei-me toda com ela, de maneira tipicamente adolescente. Segui para o banho, altiva, com a certeza de que ela havia se intimidado com meu xingatório.  Me esperou ficar pelada e abrir o chuveiro. Arrombou a porta e destruiu um cabo de vassoura na minha cabeça.

Olha só, que salafrário esse cara querendo me cobrar um absurdo pelo conserto do telefone!
“Enfie sua mão de obra no cu”, que dizer meu verdadeiro selfie, lá no fundo de meus pensamentos.  “Nó, véi, tô achando meio caro, obrigada”, é o que diz meu falso selfie, para não desencadear o stress do conflito.

Um rapaz toca violino na esquina, o sol está ameno e firme, tem tanta gente nas ruas, quanto é profundo esse céu de outono lá nas alturas onde estão desenhados os últimos andares dos edifícios.
Na farmácia peço Carvedilol pro coração da mãe e escitalopram pra minha ansiedade. O que deus não dá, a farmácia vende, ouvi alguém dizer um dia. Quem me dera vendesse aqui também um remédio que congelasse a beleza, ou que, pelo menos, não deixasse a saudade matar a gente aos pouquinhos.

Eu tinha vinte e poucos anos e morava numa casa velha com quintal. Todas as tardes eu saia pra faculdade e batia com força portão verde de grades, já meio comidas pela ferrugem. Ao fazer esse gesto corriqueiro, olhava pra trás, para me despedir do pai e da mãe. Dentro da moldura carcomida do portão, sempre a mesma pintura: a mãe dizia “vai com deus minha filha”, enquanto esfregava nossas roupas num tanque antiquado e o pai repetia suas palavras, interrompendo a tarefa de fim de tarde, que era varrer as folhas que o vento tinha arrancado das árvores.
Teco, o meu cachorro, enfiava sua cara preta e peluda entre as grades, e chorava minha partida daquela tarde.
Um dia, quando eu me voltava para repetir o gesto, o Tempo, filho da puta ordinário, zombou de mim, ao me avisar que em breve não haveria mais nada daquilo; nem pai, nem mãe, nem benção, nem portão, nem cachorro e que eu perderia para sempre a doce combinação disso tudo.
Saí doendo dali, desci a rua de terra, passei pelo córrego sujo, tropecei num rato podre. O choro do cachorro foi sumindo devagarinho.
Daí pra frente o tempo foi preciso. A ferrugem comeu o resto portão e quase tudo que havia atrás dele. A gente se mudou da casa, a faculdade terminou, pai morreu antes dos 60, eu abandonei a família e o Teco definhou de saudades de mim.

Demora da porra na fila do correio. Quinze minutos sem chamarem nenhuma senha!
Meu verdadeiro selfie sonha que estou mandando todos os atendentes para o caralho que os parta, mas meu falso selfie me mantém sentada e pacífica, para não desencadear o stress do conflito.
Será que há muitas outras pessoas que, como eu, estão em constante perigo de explosão?
Saio de lá uma hora depois e mergulho na Avenida Afonso Pena quase toda molhada por sombras. Subo a João Pinheiro, onde quase sou atropelada por um ciclista. Penso na bicicleta que montei, quando criança, com peças compradas de um depósito de sucata.
 Será que há muitas pessoas que, como eu, fizeram seus sonhos emergirem da ruína?
Me bate um tristeza funda e fico com vontade de escrever uma longa e comovente carta de suicida.
Ela seria lindíssima, e todos que a lessem seriam, irremediavelmente, feridos pelo “tarde demais”.  Ficariam para sempre em estado de perda, pois se lembrariam de todas as suas coisas, inexoravelmente desaparecidas.
De todas, todas...
Um amor, um pai, uma mãe, um irmão, um cachorro, um anel, um livro, um bilhete, um vento, um tom de azul.
Ao ler minha carta de suicida todo mundo ia se sentir um pouco Parsifal, se lamentando, pela eternidade afora, a ausência do seu cálice sagrado.

Tarde demais, tarde demais...
E ela nunca, nunca mais conseguiu parar de chorar.


sábado, maio 30, 2015

Uma fila

Há alguns anos, eu guardo um coração. Coração mesmo, órgão, como a "lua satélite" do Bandeira. Vigio com zelo, conto batidas, procuro remediar suas irregularidades rítmicas, percorrendo farmácias, esticando a corda da vida com caixas de comprimidos.
Há anos também eu lido com uma ferida.Ferida mesmo, sem metáfora. Sou especialista em marcas de ataduras.
Toda vez que leio num papel algum resultado que me diz que o coração dela está um pouco mais fraco e a cada vez que a ferida se abre de novo, eu sinto um gosto de fim e de derrota.
Como se fora incapaz de manter o fio esticado, como se houvera falhado.
II
Mãe ficou doente de uma hora para outra.
Quando a encontrei em casa, só, ela não podia respirar. No caminho até o hospital, pensei que assistiria a sua morte enquanto dirigia e que aquela se tornaria a mais infeliz de todas as noites mais infelizes que já amarguei nessa vida.
Desde então, alimento seu coração com pílulas. Desde então, vigio seu pulsar através de imagens ultra- sônicas que me fornecem números que me indicam medidas de força e desempenho.
III
E é por isso que frequentamos este ambulatório, onde pessoas fazem exames periódicos para também vigiarem seus corações. Aqui funciona também um bloco cirúrgico. O que mais se vê são velhos adiando a morte e jovens estropiados. Muita gente não tem uma das pernas. Muita gente não tem nenhuma. Muletas, cadeiras de rodas e tristeza pingando de olhos. E gente mal educada nos guichês de atendimento.
Uma fila.
Aí, na fila, um senhor de noventa e tantos tenta passar na frente de todo mundo.Alega ter prioridade.
Eis que começa o fuzuê.
Um rapaz, cuja perna provavelmente tinha sido triturada por uma roda de caminhão num acidente de moto, se revolta e manda o senhor de noventa e tantos tomar no cu, porque aqui, meu senhor ( esse "meu senhor" foi cheio de ironia e raiva) não tem isso de prioridade não, todo mundo tá fodido, o senhor tá com o pé na cova, morreu e esqueceu de cair e eu aleijado para sempre, vai tomar no cu, vai se foder, vai furar fila na casa da puta que te pariu.
O senhor de noventa e tantos se ofende e vem arrastando sua corcunda lá da boca do guichê e desce um murro no peito do rapaz da perna triturada. E lhe dá um empurrão. O rapaz cai prum lado, a muleta voa na direção de uma velha meio morta, que vegeta numa cadeira de rodas.
O senhor de noventa e tantos avança sobre o rapaz da perna triturada, que ainda não tinha conseguido se levantar. Dá-lhe tapas, puxa-lhe os cabelos.
O segurança aparece para acabar com a confusão.
Quando o senhor de noventa e tantos é levado para um canto pelo guarda, está chorando. Murmura para si mesmo: " nunca diga, nunca diga, seu filho da puta, que eu estou morrendo"
IV
Há alguns anos, eu guardo um coração.Eu o alimento com pílulas e analiso números que indicam medidas de força e desempenho.
Eu trago sempre um pacote de ataduras.
Minha função é manter esticada a corda da vida.

sexta-feira, maio 29, 2015

Catástrofe

Dez mil trilhões, de trilhões, de trilhões, de trilhões, de trilhões, de trilhões, de trilhões, de trilhões de anos será o tempo total de existência do universo. Um pouco antes da grande catástrofe, por aqui só haverá aridez e desolação: não mais o mar. Não mais as sombras das copas das árvores. Nunca mais esse céu.
Somente um sol expandido, fumegante, faminto e a paisagem em brasa. Estrelas haverá, mas serão estranhos astros congelados.
De nós nem sequer um vestígio fossilizado.
No entanto, atravesso os ventos e as ruas movimentadas nessa manhã iluminada de outono.Plantas germinam, há vozes e cheiros em toda parte.
Ainda há céu e ele é dolorosamente azul e desconcertante de beleza.Como alguns sonhos que ainda ouso. Nos quais há uma promessa e um grito sem resposta.Nos quais há o amor atrás de uma porta que nunca abre. Nos quais chove como apenas em sonho. Chove como apenas num poema do Pessoa.
Chove, eu amo, há uma porta fechada.
Desperto, não chove já e o céu é vasto de luz nesta manhã em que mora minha saudade.
De nunca ter sido o que nunca saberei.
Quando a atmosfera solar tragar de vez a órbita terrestre eu já terei me dissolvido, há tempos, na umidade do oco.Minha carne, meus olhos, meus cabelos. O calor já terá derretido todas as minhas vértebras e dentes e outras partes endurecidas de mim.
Mas por enquanto ainda é milagre.
E atravesso a rua e a luz da manhã enchendo os pulmões do ar gelado que me alimenta.
Vem junto um cheiro de flores maceradas, de café, incenso e merda.
Por enquanto ainda é milagre.

A música das águas

Maio amanheceu
Cantando
Notas de chuva
E frio.
A música das águas
Dodecafônica tempestade
Embala
Nosso sono-quadro em
Chiaroescuro,
Nosso sono quente
E de ternuras macio.
Nosso sono:
Tua respiração
Em minha face.

Entulho

Tenho voz aveludada,
Dizem,
Mas 
No estômago, eles não sabem,
Toneladas de entulho
Na garganta, aspereza e
Cacos de vidro.
Se sangro pouco
Quando falo
Ou se há um canto em vez de um grito
É questão de alquimia
É porque sou macumbeira, minha filha.

Essa lua, esse conhaque

A infância talvez fosse azul
não houvesse tanta barata.
Não houvesse
barriga vazia
as tardes talvez
fossem.
A fome é
alucinógeno natural.
O inferno
indo e
vindo,
criança desnutrida na gangorra
do parquinho
infestado de pedófilos.
Não houvesse tanta miséria
a infância
talvez
fosse.

Com licença, com licença poética

Tenho apenas minhas mãos
e um tesão maior que o mundo
A vontade de amor
sempre me paralisou o trabalho
Sou anjo esbelto e safado
Solidão me come por dentro
diariamente
Tenho minhas mãos
Sou mulher desdobrável
Eu sou.

Diva, macumbeira


I
No centro de macumba
a mãe
caminhava no círculo em brasa.
Os santos desciam
para girar com ela.
Foi assim que aprendi
a dançar no fogo.
Além disso
a Avó Preta
do céu de Olorum
olha por mim
Rainha Louca
cantando no meio da roça
distante de uma história paterna.
II
Também sou Rainha de mim.
Tenho um teto todo meu.
Paguei o automóvel
em sessenta prestações.
Foi ninguém que me deu.
Homem nenhum me tem.
Sou de outra mulher
que é Rainha também.
Ando pela casa,
sem roupa
e no Divã meu deito
lendo Anna Akhmátova.

Para quem tropeça

Mais um poema se perdeu
quando eu descia
com a pressa habitual
as escadas sujas do metrô.

Como de costume
foram abertas todas
as portas dos vagões.

Nesta manhã
mais uma vez
pessoas colidem
como baratas envenenadas.

Para que tanto ombro, meu Deus?
Pergunta meu coração
com a voz vacilante
de um convalescente.

Me sento numa cadeira verde
recolhendo junto ao peito
uma imensa asa ferida.

Lá fora faz sol.
Mas a paisagem é sempre
meio cinza
para quem tropeça
nas próprias ataduras.

Muitos carnavais

A pele
Não faz ruído
Quando enruga,
Meu amor.
O tempo borda em silêncio
Em cada face
Um mapa de morte.
Em cada rosto
Marcado
Foi esculpido
À navalha
Um mapa de dor.

Domingo

Ela me diz
que estou tão triste
porque viu
em cada olho meu
uma antiga umidade.

Revisito velhos discos.
Há canções que ecoam
sempre que a morte atravessa o jardim.

Minha tristeza
é de quem acaba
de voltar de um funeral.

Com a mão direita
seguro uma estrela partida.
Seus estilhaços se afundam
em minha carne.

( de que vale um punho fechado quando está sangrando?)
Na mão esquerda
trago uma rosa morta.
A escuridão de seu corpo
avança para o meu coração.

Inércia

Inércia 
é também
movimento infinito
Voar para sempre
retilínea
uniforme
ou até que
um corpo me ampare
ou até
que me arrebente a parede.
Ação, reação
e uma sinfonia
para o amor mais destrutivo.
Um lamento
e um blue
para o potencial
explosivo de todo amor
que começa com metáforas.

Poeminha safadinho

Para 
saciar
saudade
siririca
sem-vergonha.
Fabulosa felina
arranha o caos
engole a lua
e sonha.

Alparazolam

Meu coração
é uma cripta.
Aqui não chegarão
vozes de aquém.
Silêncio é luxo
só gente morta tem.

Meu coração
é um bunker.
As bombas
ficaram do lado
de fora,

Para dor no peito
nitroglicerina.
Para dilacerar-se
em espetacular explosão
idem.

Ambiguidade sulfúrica
Disfarçada
com a cor
e a textura
do mel.

Mas meu coração é uma cripta.
O amor ficou
do lado
de fora.
Pronunciei
meu nome
para o grande espelho
da sala de espera.
O Som
retornou em eco
Como se eu estivesse
à beira do vazio

Esperar Saturno

Enquanto esperava Saturno
Colei mil vezes meu coração
A Solidão hospedada em meu útero

Enquanto esperava Saturno
Colhia amoras
nos intervalos da dores

Enquanto esperava Saturno
Decorei a Primeira Elegia
A Solidão alargando os espaços
por dentro
A Lua sangrava através do meu corpo

Esperei Saturno
com livros nas mãos:
"Tulipas são perigosas", eles sussurravam
"Flores que falam não dizem nada
além de mentiras"

Enquanto esperava Saturno
me masturbava
Colhendo Luas nos intervalos das dores
Amoras sangravam através do meu corpo

E quando Saturno voltou
Explodi, sem pesar,
meu triste museu de sarcófagos.

sexta-feira, setembro 12, 2014

Lugar

Aqui
onde foi abolido
o hímen
úmido hífen
que nos separava.

Aqui
onde a língua é dinâmica
e dedos são talheres.

Aqui
onde o grelo
destrona o falo:
É rijo
É  lindo
É talo.

Anoitecer

Tecer o amor.
Depois tecer
a dor
de o amor ter sido.

Amortecer a queda.

Amor só é suave
na subida: canção de harpa.

O inverso
é farpa.

quarta-feira, setembro 03, 2014

Fear of the dark

Aqui tão escuro. E veio um vento ventilhando pedrinhas e gravetos, arremessando-os contra a janela de madeira. Ainda é madrugada, falta muito pra amanhecer?
Agarrada à saia do vento veio a chuva, chufininha, umedecendo. Se eu fosse raiz fincada em solo fértil brotaria como brotou aquele pé-de-mamão num túmulo do cemitério de Justinópolis. Os frutos nasciam aos pares, sempre. Pendiam como os tristes testículos de um deus. Pendiam, como os peitos caídos da terceira idade.
Testículos e peitos que os coveiros comiam.

Uma anedota

Dizem que um morto enterrado no cemitério de Justinópolis foi condenado por algum ser inefável a continuar enxergando para sempre. Por isso de seu túmulo feioso nasceu uma robusta jabuticabeira. Cada Jabuticaba, pasmem, era um olho.
Ai que medo.
A rotina do cemitério era aquela pasmaceira, nem um pouco interessante de  ver: abre buraco, fecha buraco; entra cortejo, padre rezando, dentadura escapando.
Assim, assim.
Ai meu deus.

Numa manhã esquizofônica em que bem-te-vis cantavam nos intervalos dos ruídos de uma britadeira, um casal depositava flores no túmulo vizinho do condenado, enquanto tentavam, a seu modo, se comunicar com a morta recente e querida.
O defunto dos mil olhos de jabuticaba morria ( ha!) de inveja de situações desse tipo. Ninguém o visitava, coitado. Não era digno de rosas. Teve vontade de gritar: “Também quero uma flor!”.
Mas fora condenado a ter olhos e não bocas.
O casal se sentiu observado.
Ai que medo.
Ai meu deus.

Vez em quando um coveiro ia até a frondosa árvore carregada de frutinhas brilhantes, arrancava um punhado delas e chupava, com gosto.
O defunto morria (ops!) de ódio.
“Vá chupar o olho do  cu da vó”
Queria gritar.
Mas fora condenado a ter olhos e não bocas.

Um pô, Emma! em homenagem a anedota que inventei:

Aqui jaz.
Aqui, jamais.
Aqui
apenas
jabuticarás.

Bruce Dickinson e Emily Dickinson não eram casados, oh meu sonho. Eles nasceram em séculos diferentes oh, meu cérebro. Além do que ela era tão branca voz da solidão e ele tão fear of the dark.

Fear of the dark!

Fear of the dark!

Dá certo não.

       Já vai amanhecer?
            Sei não.
O vento continua arremessando na janela os destroços das coisas.
E eu aqui.

Louquinha, louquinha de pedra lascada.

segunda-feira, agosto 18, 2014

O que o lixo me deu


Eu era Criança-Menina
Um Pássaro Sujo 
e com fome

E o lixo me deu
certa vez
um saco repleto de livros;
uns bonecos tristes e mutilados
e um caderno velho de poemas

que eu lia pros gatos;
que eu lia pra lua
que eu lia na rua
quando lá não havia ninguém.

E o lixo me deu outras coisas:
porque lá atiravam
pneus em chamas
então o lixo me deu minha primeira queimadura;

porque lá atiravam cacos de vidro
então o lixo me deu meus primeiros ferimentos;

porque lá atiravam animais que morriam
então o lixo me deu o cheiro podre
do corpo sem alma.

O lixo me deu
certa vez
uma caixa com muitas memórias dos outros:
cartões com figuras em alto-relevo
que guardavam mensagens de desejos de felicidades eternas;
cartas para um amor distante;
pequenas anotações ordinárias;
fotografias em sépia.

O lixo meu deu
misturada a cor amarela daqueles papéis
uma miséria que era maior que a miséria
que eu tinha,
e eu senti com força
a força de toda saudade do que não existia
e um gosto
de tempo
de resto
e ruína.

Eu era uma Criança-Menina.
Eu era a Menina Encardida
que ninguém queria amar.

Eu lia poemas pros gatos;
eu lia poemas pra lua;
eu lia poemas na rua
quando lá não havia
ninguém.