Pouca gente sabe, mas o Tarkovsky é meu cineasta favorito.
Soube de sua
existência há uns bons anos, quando alguém iniciou a exibição de Solaris na sala da casa de um amigo,
onde eu me encontrava. Não é preciso dizer que a lentidão da narrativa provocou
protestos e o filme foi rapidamente substituído por um blockbuster, bem mais ao gosto dos adolescentes que éramos.
Anos mais tarde
ouvi de novo seu nome. Foi numa loja de DVDs: Raquel me deixou intrigada ao me
contar que o primeiro e o último longa deste gênio terminavam praticamente do
mesmo jeito, com cenas finais muito parecidas, como se um círculo estivesse
sendo fechado. (Os filmes são A infância
de Ivan, de 1962 e O sacrifício, de 1986, respectivamente).
Mas o que mostram ambas as cenas finais? Também fiquei curiosa e foi por esse motivo que comecei
a assistir aos filmes dele. E quis começar pelo começo, seguindo a ordem
cronológica das filmagens. Então minha iniciação no assombroso mundo de
Tarkovsky não se deu com o primeiro longa, mas com um média metragem que veio a
público antes: falo de O rolo compressor
e o violinista, de 1960. Só assisti ao belíssimo A infância de Ivan um pouco mais tarde, e pude assim matar minha curiosidade: a cena final, à qual me
referi acima, mostrava uma criança (Ivan, o protagonista), deitado sob uma
árvore.
Mas não se
enganem: não saí desesperada em busca do último filme para me certificar se
nele a cena final do primeiro se repetia de verdade na imagem derradeira. Eu
estava seduzida, e queria assistir a todos os outros; meu desejo tinha mudado
de rumo.
Tive de adiar o Andrei Rublev,( que seria o próximo da
lista) por dois motivos: a péssima qualidade da imagem do arquivo que baixei na
internet e as mais de três horas de duração da película, às quais,
infelizmente, naquele momento, minha rotina movimentada não me permitiria me
dedicar. Mas segui vendo Solaris (1972), O
espelho (1974), Stalker(1979), Nostalgia (1983) para, enfim, chegar ao
último, O sacrifício e ver o tal
menino, debaixo da tal árvore, na tal cena final, como no longa de estreia. Mas
essa curiosidade boba, que a principio tinha me provocado, acabou perdendo todo
o sentido depois que entrei efetivamente na gravidade do universo úmido de Tarkovsky.
II
Tarkovsky me assombra. Como
poucos conseguem fazer. Como um Pasolini o faz, por exemplo, em Teorema (filme que nos desnuda em plena
aridez desértica e nos fere com um réquiem de Mozart, imprimindo em nossos
corpos as absurdas dimensões da ausência); ou como um Bergman, em Sonata de Outono, que nos sufoca com
o jorro de tanta mágoa desentranhada. (A última vez que saí do cinema tonta de
perplexidade foi há mais de um ano, quando assisti ao inquietante Cavalo de Turim, de Béla Tarr).
Estava com saudades desse
assombro.
III
Então chegou o feriado de Corpus Christi, um dia bem frio. Embora
eu tivesse um monte de coisas para fazer, resolvi deixar tudo de lado; decidi
me enroscar em cobertores felpudos e passar toda uma tarde assistindo ao
Tarkovsky que me faltava: Andrei Rublev,
o filme de mais de três horas, aquele que em outra ocasião eu tinha deixado para
depois.
IV
Andrei Rublev foi um monge russo
de verdade. Viveu na Idade Média. Pintava quadros. Era talentoso.
Nada mais banal.
O que me encanta no Tarkovsky é a
sua genialidade alquímica, capaz de transformar o que serviria apenas como
material para a comportada biografia de um homem religioso em uma profunda
reflexão sobre a dúvida: a perda da fé nos preceitos cristãos, a desconfiança
em relação ao caráter representativo da arte e da linguagem e a descrença na
organização social.
Ao longo das mais de três horas
de Andrei Rublev assistimos ao
dilaceramento do herói: do lado de fora do mosteiro onde passou grande parte da
vida, ele se encontra com uma realidade muito diferente da experimentada até
então.
Rublev viaja à Moscou, com o objetivo de
atender ao convite que recebera, para pintar o interior de uma igreja, onde
deveria representar as cenas do Juízo Final. O choque com a realidade é marcado
por decepções, que já se iniciam em sua trajetória. Logo no início da viagem,
Rublev e seus companheiros de trabalho presenciam o assassinato de um grupo de
pagãos, por cavaleiros da fé. As atrocidades são, portanto, cometidas em nome
de Deus, nome sagrado que Rublev, até então, acreditava ser um sinônimo para
amor.
Já em Moscou, o monge tem sua primeira
crise criativa. Começa a duvidar do caráter representativo da arte. Superada a
angústia, pinta. No entanto, em seguida, vê tudo o que criou sendo destruído pela violência da barbárie levada pelos
incendiários tártaros, que invadem a cidade, estuprando mulheres e matando
homens e animais.
Nas cenas de invasão, o grau de
absurdo da crueldade e da violência é levado ao extremo quando as vitimas são
animais: impossível não demonstrar repulsa, por exemplo, na sequência em que um
cavalo é ferido e cai de uma estrutura de madeira, quebrando as pernas.
Assistimos à sua insistência, às suas vãs tentativas de erguer-se e ficamos
pasmos quando um figurante atravessa friamente o peito do animal paralítico com
uma lança. (O olho revirado do cavalo morto é, para mim, a imagem do absurdo).
E há também a terrível cena em que alguém ateia fogo em uma vaca viva.
Foi com esse mundo de violência
que Rublev defrontou-se (mundo que contradizia a Palavra de Deus registrada nos
livros e tantas vezes proferida nos rituais litúrgicos do mosteiro...). O herói
atinge o ápice da absurdidade quando, para proteger uma mulher meio idiota (a
Muda Santa) de um estupro, mata seu agressor.
Sentindo culpa, transtornado e decepcionado,
o protagonista experimenta o fel do desespero. Seu olhar escurece e passar a
ser sempre uma pergunta pelo Sentido. Sem obter respostas, ele decide
interromper seu fluxo criativo: para de pintar por não acreditar mais que a
arte possa ressignificar o que quer que seja; enfim,o caos não pode ser ordenado.
Além disso, ele se cala. Seu voto de silêncio é resultado da
perda da fé no poder da palavra como elemento de comunicação entre os
homens.
Estamos diante de um herói em
crise. Então avançamos para a narrativa do ato final, denominado “O sineiro”
que me deixou toda arrepiada. (O filme é dividido em atos, como uma peça
teatral).
Eis um resumo: Rublev está
silencioso, há dezesseis anos. Então, os cavaleiros do príncipe saem à procura
de alguém que domine as técnicas da feitura de sinos. No entanto, todos os
especialistas estavam mortos. No povoado vizinho só foi encontrado Boriska, filho de um dos sineiros falecidos. O rapaz
afirma conhecer o segredo para a modelagem de bons sinos e acaba convencendo os
cavaleiros a levá-lo com eles. O rapaz havia mentido: não sabia de segredo
nenhum. E o pior: Se ele não tivesse sucesso na empreitada, sua cabeça seria
cortada.
Boriska representa o gênio
criativo, autodidata, impetuoso, cujo coração enfurecido transborda confiança
em si mesmo. Boriska acredita na arte que faz. Mesmo não conhecendo o manual, o
“segredo” dos sineiros, ele conclui o trabalho que lhe haviam incumbido. Seu sino badala e sua
cabeça se mantém presa ao pescoço.
A força criativa de Boriska
comove Rublev, que tudo observa. E após tantos anos de silêncio, o monge fala.
Ambos se aproximam, se adotam e seguem juntos, Rublev pintando e Boriska
fazendo sinos...
Eu não chamaria isso de final
feliz, porque o processo todo é tão sofrido, que nos últimos minutos do filme
os personagens ( Rublev e Boriska) têm o aspecto de soldados famintos que
passaram meses em trincheiras. Mas há uma positividade que me agrada. Há uma
revolta contra o sem sentido do mundo, contra os absurdos que nos deixam
cabisbaixos, desesperançosos. Há uma força contrária à resignação.
E há, sobretudo, as vozes da arte
se opondo e se sobrepondo ao silêncio que antecipa a morte.
Pouca gente sabe, mas o Tarkovsky é meu cineasta favorito.
3 comentários:
Ola, vi que escreveu um poema da série de HQ Estranhos no Paraíso. Sou muito fã da série e atualmente tento escrever sobre o que já foi publicado dela por aqui e o que ainda não foi publicado. Se puder acompanhe, bjss
http://cinemacemanosluz.blogspot.com.br/2013/05/cine-especialhq-estranhos-no-paraiso_26.html
Olá, estou passando para parabenizar seu Blog. Gostei muito da atmosfera daqui, tudo aqui é feito com esmero e maestria, dá gosto de ler. Se quiser, dê uma conferida no meu. Obrigada!
http://madamshadow.blogspot.com.br/
Olá Ariane! Obrigada pela visita.
Agora estou acompanhando teu belíssimo blog.
Abraços!
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