I
Ela era mesmo uma mulher. A primeira constatação sobre sua
natureza humilhada viera muito cedo, quando, sob a tirania da mãe, era forçada a
fazer todo o serviço doméstico, enquanto os irmãos, miniaturas de homens, ensaiavam
felizes para a vida adulta, se deleitando com divertidas e inteligentes
brincadeiras.
Mais tarde, quando se tornara uma “mocinha”, lhe ensinaram
que bons modos eram necessários: não se sentar de pernas abertas, não dizer
palavras feias, conter impulsos, principalmente os sexuais. Assim ela cresceu
reprimindo revoltas, sufocando sonhos, suportando mensalmente, como uma
religiosa, os desconfortos hormonais e, todos os dias, desde a adolescência, o
peso dos seios, grandes demais para sua estatura.
Casou-se aos 23. Engordou.
foi com pavor que viu seu corpo tornar-se diariamente
monstruoso quando, aos 26, engravidou.
Depois do nascimento da criança Paula até conseguiu perder
algum peso, mas seus seios estavam ainda mais pesados, devido à fartura de
leite.
Paula, que nunca havia sido uma pessoa alegre foi, aos
poucos, ficando mais triste. Sua vida era uma grande cela. Uma natureza
aprisionada sujeita a costumes sociais absurdos. Um casamento infeliz e um bebê
de quase um ano, que sugava toda a sua existência, com sua dependência ameaçadora. Paula, que nunca havia
permitido que o desejo explodisse em pétalas em sua pele estriada tornou-se uma
mulher ainda mais fria e rígida, na cama escurecida pela exigência diária de
luzes apagadas.
Quando deixou de dar-se sem prazer, o marido, dez anos mais
velho que ela, reclamou:
- Paula, o que está acontecendo? Dor de cabeça não é... O
neurologista já disse!
- Ora! Me deixe! Não tenho vontade! Nunca tive!
Ele, egoísta, comentava:
-Mas, e eu? Como ficam as minhas vontades? Depois não vá
reclamar quando eu arrumar outra!
E, ao dizer essas palavras ressentidas, fazia um gesto brusco
de insatisfação, cobrindo-se com o edredom, dos pés à cabeça, virando-se para o
lado da parede.
Embora agisse dessa maneira em resposta às cada vez mais constantes
recusas da mulher, o marido de Paula não era um homem ruim. Agia assim porque
era apenas uma pobre criança, grande e desamparada, tão dependente do corpo da
mulher quanto seu filho pequeno.
O fato é que a falta de sexo acabou por sensibilizá-lo.
Então, em certa noite chuvosa, quando retornou do trabalho,
sentou-se ao lado de Paula, que assistia à novela, e disse:
-Amor, você precisa sair um pouquinho. Anda triste demais. Só
fica enfurnada aqui dentro, isso faz mal.
- Ah não. Quero ficar aqui, não quero ver ninguém.
- Liga pra suas amigas. Já tem muito tempo que você não sai
com elas. Marca um cineminha. Joga conversa fora. Pode deixar que eu cuido do
João Paulo.
Depois de muita insistência do marido, Paula foi persuadida
de que precisava mesmo sair para respirar um pouco. Seguiram-se telefonemas, um
banho demorado, uma arrumação indecisa diante do espelho, o estalar leve de
lábios que se encontram e um barulho de porta batendo.
O marido ficou sozinho na sala. O filho, no quarto, chorou,
reclamando atenção.
II
Toda arrumada assim era até bonito ser mulher. Mesmo com
peitos tão grandes e pesados de leite. E o decote escolhido ajudava, e como.
No caminho do Shopping, enquanto dirigia, percebeu os olhares
dos outros homens. Eles, sem dúvida a desejavam. O desejo se estampava na cara
safada que faziam quando estavam parados ao lado dela, no sinal. Mal sabiam
eles que seus seios já tinham dois proprietários. Mal sabiam eles que escondida
na sensualidade do decote estava a imagem sagrada de uma mãe que amamenta.“Eu sou uma mulher que amamenta”, ela pensava, asfixiando as
vontades provocadas pelos olhares lascivos dos homens.
Às 9h encontrou, no cinema, duas amigas, as quais não via há
mais de um ano. Assistiram Onde vivem os
monstros e depois fugiram para um bar, com o intuito de conversar, tomar
algumas cervejas e experimentar tira-gostos.
O ano vivido na distância foi preenchido com narrativas,
muitas. A noite estava bela e repleta de luzes. A chuva havia cessado, deixando
a atmosfera úmida e poças lamacentas nas ruas desertas.
A reunião das amigas prolongou-se até a meia-noite quando,
estupefatas, levaram sincronicamente as mãos às testas, se dando conta do
avançar das horas.
-Meu Deus! É tarde! – Disse Paula, como um coelho de Alice.
Levantaram-se as três ao mesmo tempo. E foi ao mesmo tempo
também que sentiram o reaproximar-se das escuras nuvens de suas vidas
infelizes.
Beijaram-se. Disseram adeus, não sem antes selarem a promessa
de um breve reencontro.
Separaram-se.
III
Paula caminhou sozinha até o lugar onde o carro estava
estacionado.
Subitamente, um vulto aproximou-se, rápido como as viagens da
luz e, antes que ela pudesse pensar em qualquer tipo de reação, acertou-lhe a
cabeça com um pesado objeto de metal.
Meia hora depois ela acordou. Tudo era escuridão. Teria sido
golpeada pela foice da morte que, arrependida, a fizera despertar dentro de um
caixão, já lacrado?
A caixa preta onde Paula fora depositada se movia. E foi em
meio a enjoos e dores atrozes nas articulações que ela percebeu que estava
aprisionada em um porta-malas.O carro ainda chacoalhou por algum tempo. Depois parou e a
tampa do porta-malas ergueu-se. Junto com o cheiro de mato molhado, apareceu,
diante de Paula, a silhueta de um homem alto e forte.
Ele a arrancou de dentro do carro a tapas e puxões de cabelo.
Ele batia apenas com umas das mãos, pois a outra estava ocupada, segurando um
revólver de cano longo, pelo qual parecia nutrir amor conjugal. Paula chorava e
sangrava.
Atirada com violência ao chão lamacento, ela recebeu ordens
para abrir as pernas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário