segunda-feira, agosto 31, 2015

Sombras na Afonso Pena

 O ônibus sempre atrasado.
Entrei, abrindo caminho entre tarados, crentes e jovens tagarelas. Tinha um lugar pra sentar no fundo, mas tava vomitado. Fiquei onde estava. De azedume já bastam as caras de bunda de meus desafetos.
Enfiei a mão no bolso e tirei de lá um pedaço de papel todo amassado. Era uma lista de tarefas: consertar celular, comprar remédio da mãe, comprar meus remédios, ir aos correios.
Ontem fui a casa da mãe. Ela ficou meio incomodada com a largura da minha bermuda, acha mais bonita, pra mulher, roupa justa.
“Fôdas”, mãe (!), quer dizer meu verdadeiro selfie, lá no fundo de meus pensamentos. “Mas, mãe, eu gosto assim”, é o que diz meu falso selfie, para não desencadear o stress do conflito. Ela fala qualquer coisa sobre a vontade que tem de dar socos em sapatões. Na novela das 9 duas mulheres se beijam, acho que foi por isso que ignorou completamente minha condição, ao fazer esse comentário. Falou por impulso, penso. Acho que ela nunca teria intenção de me magoar.
Ela tá com a pele toda sulcada. Toda vez que a vejo o Tempo, pregado na cara dela, me ameaça: “ Você vai perder feio, garota” Ele me diz. “E vai ficar com sequela”.
O tempo é bom às vezes, eu sei. Sem ele a gente cometeria suicídio assim que nosso primeiro gato morresse entalado com a vértebra do peixe.  Mas sua outra face é a de um artista perverso que gosta de desenhar traços profundos na cara da gente e das pessoas que a gente ama. Depois rasga a gente ao meio, com sua caneta pontuda.
Filho da puta duma figa.
O correio fecha às 17 horas e o Tempo, herdeiro primogênito do Capeta, de propósito, está passando com mais pressa. E o ônibus, claro, não poderia andar mais devagar. Dizem que a culpa é de um tal de Murphy, mas sei que é do próprio chifrudo encaralhado.
Quando contei pra mãe que eu era lésbica ela não me deu um soco. Se protegeu do jeito que sabe, com o escudo da fantasia. “Faz de conta que não”, e tudo está bem. Foi assim que ela sempre viveu.
Mas já me bateu, em inúmeras outras situações. Algumas são memoráveis:
1)      Eu tinha uns cinco anos. A rua de casa parecia o solo lunar, tamanha era a quantidade de crateras que tinha. Choveu. Os buracos viraram piscinões. E lá fui eu me banhar na lama. Ela me puxou pelos cabelos. Mãe nervosa era capaz de constranger todos os círculos do inferno.
2)      Mais ou menos na mesma época tentei escalar o armário da cozinha. Ele caiu em cima de mim. Surra de mãe, com cinto pesado de pai.
3)      Eu tinha 16 anos. Queria ir pro enterro de uma tia avó, mãe disse que não. Desboquei-me toda com ela, de maneira tipicamente adolescente. Segui para o banho, altiva, com a certeza de que ela havia se intimidado com meu xingatório.  Me esperou ficar pelada e abrir o chuveiro. Arrombou a porta e destruiu um cabo de vassoura na minha cabeça.

Olha só, que salafrário esse cara querendo me cobrar um absurdo pelo conserto do telefone!
“Enfie sua mão de obra no cu”, que dizer meu verdadeiro selfie, lá no fundo de meus pensamentos.  “Nó, véi, tô achando meio caro, obrigada”, é o que diz meu falso selfie, para não desencadear o stress do conflito.

Um rapaz toca violino na esquina, o sol está ameno e firme, tem tanta gente nas ruas, quanto é profundo esse céu de outono lá nas alturas onde estão desenhados os últimos andares dos edifícios.
Na farmácia peço Carvedilol pro coração da mãe e escitalopram pra minha ansiedade. O que deus não dá, a farmácia vende, ouvi alguém dizer um dia. Quem me dera vendesse aqui também um remédio que congelasse a beleza, ou que, pelo menos, não deixasse a saudade matar a gente aos pouquinhos.

Eu tinha vinte e poucos anos e morava numa casa velha com quintal. Todas as tardes eu saia pra faculdade e batia com força portão verde de grades, já meio comidas pela ferrugem. Ao fazer esse gesto corriqueiro, olhava pra trás, para me despedir do pai e da mãe. Dentro da moldura carcomida do portão, sempre a mesma pintura: a mãe dizia “vai com deus minha filha”, enquanto esfregava nossas roupas num tanque antiquado e o pai repetia suas palavras, interrompendo a tarefa de fim de tarde, que era varrer as folhas que o vento tinha arrancado das árvores.
Teco, o meu cachorro, enfiava sua cara preta e peluda entre as grades, e chorava minha partida daquela tarde.
Um dia, quando eu me voltava para repetir o gesto, o Tempo, filho da puta ordinário, zombou de mim, ao me avisar que em breve não haveria mais nada daquilo; nem pai, nem mãe, nem benção, nem portão, nem cachorro e que eu perderia para sempre a doce combinação disso tudo.
Saí doendo dali, desci a rua de terra, passei pelo córrego sujo, tropecei num rato podre. O choro do cachorro foi sumindo devagarinho.
Daí pra frente o tempo foi preciso. A ferrugem comeu o resto portão e quase tudo que havia atrás dele. A gente se mudou da casa, a faculdade terminou, pai morreu antes dos 60, eu abandonei a família e o Teco definhou de saudades de mim.

Demora da porra na fila do correio. Quinze minutos sem chamarem nenhuma senha!
Meu verdadeiro selfie sonha que estou mandando todos os atendentes para o caralho que os parta, mas meu falso selfie me mantém sentada e pacífica, para não desencadear o stress do conflito.
Será que há muitas outras pessoas que, como eu, estão em constante perigo de explosão?
Saio de lá uma hora depois e mergulho na Avenida Afonso Pena quase toda molhada por sombras. Subo a João Pinheiro, onde quase sou atropelada por um ciclista. Penso na bicicleta que montei, quando criança, com peças compradas de um depósito de sucata.
 Será que há muitas pessoas que, como eu, fizeram seus sonhos emergirem da ruína?
Me bate um tristeza funda e fico com vontade de escrever uma longa e comovente carta de suicida.
Ela seria lindíssima, e todos que a lessem seriam, irremediavelmente, feridos pelo “tarde demais”.  Ficariam para sempre em estado de perda, pois se lembrariam de todas as suas coisas, inexoravelmente desaparecidas.
De todas, todas...
Um amor, um pai, uma mãe, um irmão, um cachorro, um anel, um livro, um bilhete, um vento, um tom de azul.
Ao ler minha carta de suicida todo mundo ia se sentir um pouco Parsifal, se lamentando, pela eternidade afora, a ausência do seu cálice sagrado.

Tarde demais, tarde demais...
E ela nunca, nunca mais conseguiu parar de chorar.


6 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

E eu sempre mergulho nas suas palavras como se eu estivesse vivendo o que você escreve! Isso é mágico! E eu adoro!
Como eu disse uma certa vez, encucada pela sua ausência do face... "Moça, você é mais poesia do que mulher!" Si, vc é do caralho véi!
Bjo!

Sebastião Guimarães disse...

Impressionante!
Estilo único,rasgado e louco!
Prato delicioso de restos entulhados em geladeira velha,não mata mais engorda!

Sebastião Guimarães disse...

Impressionante!
Estilo único,rasgado e louco!
Prato delicioso de restos entulhados em geladeira velha,não mata mais engorda!

O Agente Literário disse...

Simone! O seu texto é maravilhoso! Sou editor de uma Revista cultural, a "Conhece-te", e adoraria publicar os seus textos.
Abraços e boas coisas!
Marcelo Pereira Rodrigues (MPR)
nosmpr@hotmail.com

Kamilla Pinheiro disse...

Nossa, muito muito muito bom!