O ônibus sempre atrasado.
Entrei, abrindo caminho entre
tarados, crentes e jovens tagarelas. Tinha um lugar pra sentar no fundo, mas
tava vomitado. Fiquei onde estava. De azedume já bastam as caras de bunda de
meus desafetos.
Enfiei a mão no bolso e tirei de
lá um pedaço de papel todo amassado. Era uma lista de tarefas: consertar
celular, comprar remédio da mãe, comprar meus remédios, ir aos correios.
Ontem fui a casa da mãe. Ela
ficou meio incomodada com a largura da minha bermuda, acha mais bonita, pra
mulher, roupa justa.
“Fôdas”, mãe (!), quer dizer meu verdadeiro
selfie, lá no fundo de meus pensamentos. “Mas, mãe, eu gosto assim”, é o que
diz meu falso selfie, para não desencadear o stress do conflito. Ela fala
qualquer coisa sobre a vontade que tem de dar socos em sapatões. Na novela das
9 duas mulheres se beijam, acho que foi por isso que ignorou completamente minha
condição, ao fazer esse comentário. Falou por impulso, penso. Acho que ela
nunca teria intenção de me magoar.
Ela tá com a pele toda sulcada. Toda
vez que a vejo o Tempo, pregado na cara dela, me ameaça: “ Você vai perder
feio, garota” Ele me diz. “E vai ficar com sequela”.
O tempo é bom às vezes, eu sei. Sem
ele a gente cometeria suicídio assim que nosso primeiro gato morresse entalado
com a vértebra do peixe. Mas sua outra
face é a de um artista perverso que gosta de desenhar traços profundos na cara
da gente e das pessoas que a gente ama. Depois rasga a gente ao meio, com sua
caneta pontuda.
Filho da puta duma figa.
O correio fecha às 17 horas e o
Tempo, herdeiro primogênito do Capeta, de propósito, está passando com mais
pressa. E o ônibus, claro, não poderia andar mais devagar. Dizem que a culpa é de
um tal de Murphy, mas sei que é do próprio chifrudo encaralhado.
Quando contei pra mãe que eu era
lésbica ela não me deu um soco. Se protegeu do jeito que sabe, com o escudo da
fantasia. “Faz de conta que não”, e tudo está bem. Foi assim que ela sempre
viveu.
Mas já me bateu, em inúmeras
outras situações. Algumas são memoráveis:
1) Eu
tinha uns cinco anos. A rua de casa parecia o solo lunar, tamanha era a
quantidade de crateras que tinha. Choveu. Os buracos viraram piscinões. E lá
fui eu me banhar na lama. Ela me puxou pelos cabelos. Mãe nervosa era capaz de
constranger todos os círculos do inferno.
2) Mais
ou menos na mesma época tentei escalar o armário da cozinha. Ele caiu em cima
de mim. Surra de mãe, com cinto pesado de pai.
3) Eu
tinha 16 anos. Queria ir pro enterro de uma tia avó, mãe disse que não.
Desboquei-me toda com ela, de maneira tipicamente adolescente. Segui para o
banho, altiva, com a certeza de que ela havia se intimidado com meu xingatório.
Me esperou ficar pelada e abrir o
chuveiro. Arrombou a porta e destruiu um cabo de vassoura na minha cabeça.
Olha só, que
salafrário esse cara querendo me cobrar um absurdo pelo conserto do telefone!
“Enfie sua mão
de obra no cu”, que dizer meu verdadeiro selfie, lá no fundo de meus
pensamentos. “Nó, véi, tô achando meio
caro, obrigada”, é o que diz meu falso selfie, para não desencadear o stress do
conflito.
Um rapaz toca
violino na esquina, o sol está ameno e firme, tem tanta gente nas ruas, quanto
é profundo esse céu de outono lá nas alturas onde estão desenhados os últimos
andares dos edifícios.
Na farmácia peço
Carvedilol pro coração da mãe e escitalopram pra minha ansiedade. O que deus
não dá, a farmácia vende, ouvi alguém dizer um dia. Quem me dera vendesse aqui
também um remédio que congelasse a beleza, ou que, pelo menos, não deixasse a saudade
matar a gente aos pouquinhos.
Eu tinha vinte e
poucos anos e morava numa casa velha com quintal. Todas as tardes eu saia pra
faculdade e batia com força portão verde de grades, já meio comidas pela
ferrugem. Ao fazer esse gesto corriqueiro, olhava pra trás, para me despedir do
pai e da mãe. Dentro da moldura carcomida do portão, sempre a mesma pintura: a
mãe dizia “vai com deus minha filha”, enquanto esfregava nossas roupas num
tanque antiquado e o pai repetia suas palavras, interrompendo a tarefa de fim
de tarde, que era varrer as folhas que o vento tinha arrancado das árvores.
Teco, o meu
cachorro, enfiava sua cara preta e peluda entre as grades, e chorava minha
partida daquela tarde.
Um dia, quando eu
me voltava para repetir o gesto, o Tempo, filho da puta ordinário, zombou de
mim, ao me avisar que em breve não haveria mais nada daquilo; nem pai, nem mãe,
nem benção, nem portão, nem cachorro e que eu perderia para sempre a doce combinação
disso tudo.
Saí doendo dali,
desci a rua de terra, passei pelo córrego sujo, tropecei num rato podre. O
choro do cachorro foi sumindo devagarinho.
Daí pra frente o
tempo foi preciso. A ferrugem comeu o resto portão e quase tudo que havia atrás
dele. A gente se mudou da casa, a faculdade terminou, pai morreu antes dos 60,
eu abandonei a família e o Teco definhou de saudades de mim.
Demora da porra
na fila do correio. Quinze minutos sem chamarem nenhuma senha!
Meu verdadeiro
selfie sonha que estou mandando todos os atendentes para o caralho que os parta,
mas meu falso selfie me mantém sentada e pacífica, para não desencadear o
stress do conflito.
Será que há
muitas outras pessoas que, como eu, estão em constante perigo de explosão?
Saio de lá uma
hora depois e mergulho na Avenida Afonso Pena quase toda molhada por sombras.
Subo a João Pinheiro, onde quase sou atropelada por um ciclista. Penso na
bicicleta que montei, quando criança, com peças compradas de um depósito de
sucata.
Será que há muitas pessoas que, como eu,
fizeram seus sonhos emergirem da ruína?
Me bate um
tristeza funda e fico com vontade de escrever uma longa e comovente carta de
suicida.
Ela seria
lindíssima, e todos que a lessem seriam, irremediavelmente, feridos pelo “tarde
demais”. Ficariam para sempre em estado
de perda, pois se lembrariam de todas as suas coisas, inexoravelmente desaparecidas.
De todas,
todas...
Um amor, um pai,
uma mãe, um irmão, um cachorro, um anel, um livro, um bilhete, um vento, um tom
de azul.
Ao ler minha
carta de suicida todo mundo ia se sentir um pouco Parsifal, se lamentando, pela
eternidade afora, a ausência do seu cálice sagrado.
Tarde demais,
tarde demais...
E ela nunca, nunca
mais conseguiu parar de chorar.