sexta-feira, agosto 12, 2011

O nascimento da tragédia no espírito da infância

I

Meus olhos percorriam um e-mail saturado de formalidades e se perdiam, hipnotizados pelos mega pixels da tela do computador, quando uma voz, cheia de doçura, de súbito, me pediu:
__ Moça, pega o Harry Potter pra mim?
Olhei para a menina parada a minha frente. Ela devia ter uns dez anos. Cabelos de caracol, olhos noturnos e tão magra, que flutuaria pelos ares, se o vento estivesse nervoso. “Mas essa sou há vinte anos”, pensei. A única diferença é que ela é rica e eu, na idade dela, era apenas um pássaro sujo, se alimentando de restos.
Rica, sim. Mora no prédio milionário que fica do outro lado da rua. Não obstante a fragilidade de suas formas dava para perceber que era uma menina bem alimentada. E a criança faminta que fui outrora se contorceu de inveja.
__ Você pega, moça? O Harry Potter? Tá muito alto, a estante é muito grandona.
__ Claro que pego!__respondi.__ Vamos lá!
Caminhamos juntas até a estante. A menina estava ansiosa e olhava para os livros com desejo. Perguntei:
__ Qual deles você quer?
__Todos__ Ela respondeu, gulosa.
Com um abraço, retirei a coleção de onde ela estava. Depositei os livros numa mesa, em direção a qual, minha versão infantil avançou faminta.
Depois de um tempo observando-a, arrisquei uma provocação. Queria mostrar outra coleção que, a meu ver, é bem mais legal e inteligente do que a do venerado Harry Potter.
__ Vem cá, quero te mostrar uns livros legais!
Ela me acompanhou curiosa. No caminho, me contou que já tinha lido todo o Harry Potter e que só estava matando saudades.
Chegamos ao nosso destino. Lá estava a coleção Desventuras em série, que sempre indico pra quem gosta de Harry Potter.
__ Ah, já li todos__ ela me disse, cheia de frustração.__ Não gostei, porque achei muito trágico.
__ Trágico? __ Perguntei surpreendida, diante daquela lucidez argumentativa.
__ É. E o mundo já é trágico demais. Prefiro ler Harry Potter.
Ficamos nos olhando em silêncio, por alguns instantes. E foi bruscamente que interrompi a conversa:
__ Então tá. Se precisar de mais alguma dica, é só me procurar.
Ela agradeceu e foi ler uma história do Batman.
Fiquei com um pouco de raiva: o que pode saber sobre tragédia, uma menina de dez anos de idade? Então, a bastilha das minhas pequenas tragédias infantis foi derrubada e tudo o que tinha lá dentro veio zunir no meu ouvido, com a impertinência do mais filho da puta pernilongo.

II
Quando eu tinha a idade dela talvez não soubesse nomear ainda muita coisa, principalmente as mais complexas. No entanto, naquele tempo eu era trágica e silenciosa.
Não perdi meus pais em um incêndio, não presenciei cenas sangrentas, ninguém se suicidou na minha frente. Mas havia os cães mortos, as histórias tristes e a terrível guerra que é a fome.
III

Dias atrás, eu soube que filhos de presos têm direito a uma bolsa de um salário mínimo e meio. Eles não têm culpa, não podem pagar pelos crimes do pai. Foi o pai que matou, estuprou, roubou, não eles. O meu pai não fez nada disso: ele trabalhou a vida inteira, carregando caixas pesadas nas costas, feito burro de carga. Não era criminoso, era alcoólatra e gastava parte considerável do dinheiro mirrado que recebia com seu vício; a outra parte, a que sobrava, ele não sabia administrar. Resultado: Fome, miséria e humilhação. E nada de bolsa alcoólatra trabalhador.
Dias e dias sem comer nada. Aos desmaios pelas ruas, eu sonhava com a casa de pão de mel da velha bruxa
.
IV
E é claro, anos depois, quando eu já era adulta, a cachaça acabou matando meu pai. Morte em Slow Motion. Que estranho vê-la agindo assim, tão lenta e perspicaz, como um gato se movendo na noite.

V
Na semana passada, alguém me lembrou que o dia dos pais estava próximo e eu disse que precisava comprar um presente, com urgência. Então, o alguém me olhou com uma cara esquisita, como se estivesse vendo uma pessoa doida. “Teu pai já morreu”, o alguém disse. “Eu sei, eu estava lá quando fecharam o caixão. Só que mamãe faz 70 anos nesta semana”, respondi.
No dia seguinte comprei o tal presente: um par de sandálias leves e confortáveis. Levei-as para mamãe.
Não serviram.
Não, não comprei números menores. Não, a numeração de seus pés também não mudou da noite para o dia.
Minha mãe estava com os pés enormes e feridos. Problemas de circulação sanguinea, associados a um pequeno acidente com uma pedra pesada.
Diante de tal visão, senti uma pontada forte de dor em um lugar em mim, nunca antes apunhalado.
“Minha querida magnólia branca, de raízes machucadas”, pensei.
Voltei para casa, escurecida. E foi em meio a um choro desamparado que telefonei para um médico.
“Que dramalhão mexicano”, é o que devem estar pensando meus leitores.
Que seja. Mas para mim, esses dias significaram a visita do pior dos monstros da minha infância: a ideia de perder minha mãe.

VI
Quando eu era criança tinha medo da sombra do eucalipto que tinha em frente à minha casa. Quando ventava forte nas noites de agosto, a projeção da imagem farfalhante das folhas da grande árvore no asfalto fazia lembrar um monstro malvado ou uma gigantesca alma penada.
Eu tinha mesmo era medo da noite: a noite da rua de casa, que era vazia e silenciosa e a noite da avenida próxima, com suas luzes e carros velozes, tão ameaçadores.
Na avenida, à noite, eu só circulava se tivesse meus dedos enroscados nos de meu pai, que me protegia das hostilidades e me dava o céu, num copo de guaraná.
Naquela época eu ficava pensando o que seria de mim se meus pais morressem. Como eu sobreviveria na noite? Como poderia enfrentá-la, atravessá-la sem que seus monstros me devorassem?
O tempo passou, meu pai morreu e eu saí de casa, deixando minha mãe na antiga rua do eucalipto-alma penada. Moro ainda no mesmo bairro, agora mais perto da avenida outrora hostil.
Transito freqüentemente por estes dois universos noturnos. Estou sempre sozinha, sem mãos de pai, sem guaraná com estrelas.
Um dia desses, enquanto transitava me senti tão só, que pensei: ” Meu deus, estou dentro do meu medo! Sozinha, na noite hostil do meu futuro!”

VII
Puxa vida! Como estou confessional hoje! Culpo os hormônios.
Se eu pudesse conversar agora com a pequena leitora que me falou de tragicidade como se fosse uma velha de oitenta, eu a aconselharia a comer muito chocolate, ler muito Harry Potter, antes que chegue ,inexorável, o tempo das mutilações.

5 comentários:

Samuel Medina (Nerito Samedi) disse...

A Literatura sempre terá algo de confessional.

Eu acabei de dizer isso, e olha que eu, que adoro criticar máximas, estou fazendo algumas.

A infância está encolhendo? Ou será que nossos monstros infantis eram tão grandes que conseguiram atravessar nossos armários, sair de baixo de nossas camas, enfim, escapar da sombra para nos encarar de perto?

Simone Teodoro disse...

Samuca, mulher menstruada escreve assim.... rs!

Teixeira disse...

I think somebody needs a hug!...

Estamos todos numa fase confessional. Um tanto mais confessional do que o que é comum na literatura.
Isso pra mim só demonstra que somos um movimento literário (hooray!) e que eu não quero nem saber se estou descompassado em relação à vocês, nós somos um time!

Samuel Medina (Nerito Samedi) disse...

Não tem ninguém descompassado aqui. Nós somos descompensados, só isso. Qual o problema?

Simone Teodoro disse...

Mas a única que menstrua sou eu!! kkkkk