segunda-feira, setembro 05, 2011

O monstro do armário IV


Marina e Cláudia estavam paradas diante da porta vermelho-sangue da sala que procuravam. Olhavam para o número 15 pintado com tinta preta, que já começava a desbotar.
 __ É aqui__ Disse Marina. O corredor estaria deserto se as duas não estivessem ali.
__ Este lugar é meio assustador. Melhor a gente ir andando... __ Disse Claudia, fingindo estar com medo.
__ Então, o que estamos esperando? __ Disse Marina, já fazendo o caminho inverso que tinham percorrido até chegar à sala quinze. Claudia fez o mesmo.
__ É impressão minha, ou você tem um leve sotaque? Tão leve que não consigo identificar de onde... __ Perguntou Marina.
Claudia respondeu sorrindo:
___ Sim, tenho um leve, muito leve sotaque. Eu morava do México, desde os primeiros meses de vida.
Marina estava admirada:
__Puxa, mas seu Português é perfeito!
Marina se explicou:
___Ah, sim... Isso porque minha mãe é daqui.  Em casa só falávamos Português. Ela sempre teve medo de esquecer a língua de seu país. Meu avô, pai dela é que é mexicano. Ele e minha avó viveram aqui durante muitos anos e aqui criaram minha mãe. Depois voltaram para o México. Minha mãe  ficou, e depois que engravidou de mim, resolveu ir para lá também.
Marina ouvia tudo atenta.
___ E seu pai? __ Arriscou perguntar, sem saber se deveria.
___ Meu pai sempre morou aqui. Estou na casa dele agora. Minha mãe estava muito chata, pegando demais no meu pé, então eu disse que queria vir pra cá. Ela não gostou da idéia, mas eu fiz muitas chantagens, tipo ficar sem comer, e comecei a me recusar a ir à escola também. No fim das contas, acho que ela concluiu que me mandar pra cá seria um alívio. E aqui estou.
Marina prestava atenção em cada palavra dita por Claudia. Enquanto isso olhava para seu rosto, comovida. Ela era sem dúvida, a garota mais bonita que já vira em toda a sua vida.
___ Você se jogaria de um penhasco por causa de um homem? __ A pergunta de Claudia atingiu Marina, que estava desprevenida, em cheio, como se um tijolo misterioso houvesse se esfarelado sobre sua cabeça, numa rua sem construções em andamento.  Ficou tonta novamente, e sua pele branca, quase transparente, ficou da cor da porta da sala 15. Respondeu gaguejando, diante do olhar fixo de Claudia:

__ Não! Quer dizer... Não sei, ou melhor... Acho que eu não me jogaria de um penhasco por ninguém. Você pularia?
__ Não, não... Detesto drama. Mas eu acho que pular por causa de um homem é burrice demais. Só isso.
Marina não teve coragem de perguntar qual era o problema que Claudia tinha com os homens. Chegou até a pensar que talvez ela fosse como sua falecida mãe: uma ativista feminista, que um dia usaria um homem só para engravidar, e depois o jogaria no lixo, como se ele fosse uma máquina de lavar estragada.
Elas já se encontravam próximas às grades dos portões eletrificados da escola secundária. Marina só percebeu que o tempo havia passado mais rápido do que sempre porque seu estômago roncou.

__ Bom, preciso ir. Tô morta de fome. __ Disse Marina. __ É bem provável que a gente se encontre amanhã, afinal, sua sala é do lado da minha.
As duas se abraçaram e se beijaram fraternalmente.
Claudia disse:
__ É, vai ser foda estar aqui às sete da manhã... No México a vida só começa depois da nove. Se não fosse o chato do meu pai eu não teria vindo hoje. Esse horário absurdo só pode ser coisa de padre. Não é possível!__ Disse sorrindo o sorriso mais lindo do mundo.
Marina ouviu aquele comentário com prazer.
Claudia já se afastava, olhando ainda para Marina, que permanecia de pé, encostada no portão da escola.
__ O que está desenhado?__ Marina perguntou com voz forte, para se fazer ouvir, já que a amiga já estava um pouco distante.
__ Desenhado onde? Claudia respondeu.
__ A tatuagem nas suas costas...
__Ah, ta. É uma loba.
__ Nossa, que agressivo! Marina sorria irônica.
__Nada... Ela é mansinha. Em vez de sangue, gosta de mel.

Ao dizer isso, acenou mais uma vez para Marina e parou de andar de costas, como vinha fazendo desde que havia sido questionada sobre a tatuagem.

Marina a viu desaparecer na esquina nublada. Ficou se lamentando por não ter tido a oportunidade de ver sua tatuagem e ficou imaginando como seria o desenho de uma loba viciada em mel. No dia seguinte pediria para ver. Sem querer, acabou se lembrando do garoto comedor de meleca que vira pela manhã desenhando pintos sob medida, para todos os gostos.
 Uma gota grossa de chuva caiu sobre seu nariz. As outras vieram juntas e fortes acompanhadas de um vento nervoso.
Marina correu sob a tempestade.

Ao chegar a casa foi saudada pelos latidinhos frenéticos e felizes de Hamlet. Como manifestação de carinho recebeu também um par de patas de cachorro, desenhadas com lama em seu uniforme encharcado.
Uma canção triste de violino ecoava. Por um momento, houve pausa na música, seguida do som da voz paterna:
__ Marina, você demorou hoje.
__Estive conversando com uma nova amiga__. Ela se explicou.
__ Seu almoço está na geladeira__ele disse, sem sair do quarto, e continuou sua canção.

Depois de tomar um banho bem quente, colocar roupas confortáveis e secas, Marina tentou almoçar, mas só então percebeu que havia perdido a fome. Comeu pouco e seguiu para seu quarto.
Ficou irritada com a presença de Hamlet que estava lá, deixando poças de lama por onde passava. Expulsou o cachorro do quarto a chineladas e palavrões. Deitou-se. Estava péssima. Sentia-se sozinha, seu cachorro havia emporcalhado tudo, estava com sono, não parava de pensar em Claudia. Vontade imensa de chorar. Ouviu ruídos estranhos vindos do armário. Detestava abrir aquela porta, porque tinha medo de encontrar lá o monstro das lendas infantis. Sabia que era bobagem, mas tinha medo. E medo é medo. Caminhou até o armário que ás vezes parecia um sarcófago. Abriu uma de suas portas. Duas baratas escandalosas copulavam no escuro. Ao serem surpreendidas, ficaram olhando para Marina por instantes, com cara de quem é pego no flagra fazendo coisa errada. Mas antes que Marina tivesse qualquer tipo de reação, as baratas abriram suas asas de seda cor de ferrugem e voaram pela janela. Marina correu para a cama, se masturbou pensando em Claudia, chorou e dormiu como uma pedra triste. A porta do armário estava aberta.


Um comentário:

Teixeira disse...

E você falava de fantasmagorias...
Seu texto é quase uma tela em movimento.
Acho que revivi todos os momentos em que me apaixonei durante a adolescência...