segunda-feira, outubro 17, 2011

O monstro armário VII


A noite de sono de Marina não tinha sido nada tranquila: como havia dormido a tarde inteira  depois de ter chegado da escola, teve muita dificuldade para dormir a noite. Quando conseguiu, sonhos eróticos se misturaram a exóticas cenas de canibalismo e de rituais sagrados desconhecidos.
Ela acordou antes do horário programado no despertador. Ainda não havia amanhecido.
Para Marina, acordar era uma coisa muito difícil. A coisa mais difícil do dia, por mais que este tivesse complicações que se parecessem, muitas vezes, com monstros apocalípticos cabeludos.
Um dos motivos que a deixava tão deprimida ao amanhecer era o fato de que sempre dormia muito tarde. Quando acordava tinha a sensação de que havia apenas cochilado e, junto com essa sensação, vinha uma preguiça profunda da vida, das pessoas, do sistema, da rotina, etc. e tudo o que ela mais queria era dormir para sempre. Mas não era a morte que desejava. Queria dormir para sempre estando viva, para ter consciência de que estava dormindo e do quanto dormir é bom. A preguiça profunda acompanhada de lancinante tristeza aparecia num momento específico: quando começava o barulho do tráfego. Antes, às 5h da manhã, era o silêncio absoluto na ainda escuridão do quarto; depois, à medida que os móveis iam tomando forma, graças à luz que timidamente penetrava as persianas, começavam os roncos dos motores de veículos diversos e isso deprimia fortemente nossa protagonista.
O motivo nos escapa e cremos que a ela também. Coisas de espíritos inquietos e melancólicos.
Ela acordou ainda com o gosto da carne de uma mulher, a qual devorava em sonhos, em meio à fogueiras ancestrais. Sentiu o silêncio, ouviu a escuridão, foi tomada pelas dores provocadas pelo barulho da vida germinando das ruas que já haviam despertado. Deu um pulo da cama quente, banhou-se, fez o desjejum. Tomou coragem e partiu para o I.E.
Precisava ver Cláudia.
Na escola, o mesmo movimento de sempre, as mesmas cores de sempre, o mesmo relógio acusador de sempre. Mas havia algo que tornava, naquela manha, a atmosfera daquele lugar diferente: esse algo tinha uma tatuagem de loba nas costas. Marina não compreendia bem esse desejo aflito de ver a nova amiga, mas preferiu não pensar muito sobre o assunto. Desejava ver Cláudia e era isso que importava.
Sua vida, até então, tinha sido solitária. Nunca tivera amigos íntimos, nem tinha um namorado. Tinha um cão, que se chamava Hamlet, que já contava cinco anos. Passava suas tardes devorando histórias de ficção, passeando pelas vidas de suas personagens, fazendo reflexões sobre essas vidas de papel e sobre sua própria existência. Lia e relia poemas, sorvia cada palavra, como se fosse doce de leite na época da menstruação. Seu universo lírico era repleto de poesia, de cenas de filmes, as quais via infinitamente, de belas canções que provocavam nela o sonho e o desejo de sonhar cada vez mais.
Se considerava uma garota feliz, no entanto sentia que faltava algo: alguém com quem pudesse compartilhar de seu universo. E esse alguém_ ela sentia_ era Claudia. Sua futura melhor amiga.
Na sala 14, a aula estava entediante. Os pensamentos de Marina se perdiam no dia anterior, quando, durante a palestra de Virgínia. L ela havia conhecido Cláudia. Ela estava tão perto! Apenas uma parede as separava.
O garoto gordo, das bolinhas de meleca, estava inerte: não desenhava pintos e nem enfiava o dedo no nariz. As formigas, quando se aproximavam dele, faziam uma cara assustada e davam meia volta. A garota loira, por sua vez, não largava o espelho, para o qual olhava obsessivamente.
O sinal soou estridente por todos os corredores de portas vermelhas, anunciando a hora do intervalo.
Claudia, com cara de sono, estava prestes a sair do banheiro, quando deu de cara com Marina, que sorriu um voluptuoso sorriso solar.

Um comentário:

Samuel Medina (Nerito Samedi) disse...

O desejo de Marina de dormir para sempre me lembrou o filme "A Origem", enquanto que a imagem do amanhecer foi bela, cinematográfica como você costuma ser em seus escritos.

Fiquei pensando também na ironia meta-linguística de assinalar o lugar de Marina como protagonista. Afinal, a história é dela.

A cada momento percebo como a vida dessa menina é fragmentada. Aliás, como todos nós somos feitos de pedaços, que tentamos juntar em algo que consideramos consciência...