sábado, maio 05, 2012

Chorando diante de uma mala desfeita



I


Ela me telefonou e disse: “Querida, vamos à Paris em abril”. Hesitei: não tinha dinheiro, nunca tive. Sabe-se lá se algum dia terei.

A vida é curta e o mundo é vasto, eu sei. Viajar é preciso. Mas há as despesas domésticas, vastas como o mundo, e um salário ainda mais curto que a vida. Além disso, sempre houve as narrativas maternas que, durante muito tempo, castraram meus desejos cosmopolitas: acidentes nas estradas, pessoas perdidas, que nunca mais voltaram para casa, a preocupação excessiva com meu delicado estômago, quando sujeito ao movimento curvilíneo dos veículos.

Nem às excursões da escola eu ia. Sempre ouvia a mãe dizer: “Soube de um caso, certa vez, de um grupo de mocinhas que foi fazer uma viagem para uma gruta, o ônibus caiu numa ribanceira e não sobrou ninguém”. Às vezes a história sofria algumas corruptelas: “Soube de um caso, certa vez, de umas mocinhas que foram viajar, o ônibus estragou no meio da estrada, de madrugada, perto de um matagal, o povo teve de dormir ali mesmo, enquanto esperava o socorro mecânico; e as mocinhas foram todas estupradas e mortas”...

“Ih, mãe, para!” Eu respondia já desanimada. Ela prosseguia: “Você enjoa, minha filha. Vai ficar passando mal fora de casa. Isso é muito ruim. Passar mal e não poder voltar pra casa quando a gente quer é uma tristeza”.

Depois de me libertar da tutela da minha querida velhinha, com a chegada da idade adulta, viajei um pouco. E fui, paulatinamente, perdendo o medo incutido na infância. Não por completo, é claro. Porque as histórias de mãe grudam na pele, como cheiro de cebola. Para o bem, ou para o mal.

Mas minha namorada, certa noite, me ligou e disse: “Vamos, querida, à Paris em abril”. E eu tive que concordar, equilibrando-me entre a estranheza, a euforia e o medo de não conseguir pagar as contas no final do mês.

Era hora então de fazer os preparativos para a viagem. E, entre eles, é claro, havia a necessidade de selecionar algumas imagens, as imagens certas do que eu queria ver, para evitar possíveis decepções. Na época eu estava lendo Proust, justamente aquele episódio de Em Busca do tempo perdido em que o protagonista chega ao balneário de Balbec, e sofre uma das grandes decepções de sua vida. O fato é que Marcel tinha passado bons momentos de sua infância lendo livros sobre a Normandia medieval e  pensou que ao chegar a Balbec encontraria as imagens adoradas vistas nos livros. Rochedos. Pássaros estranhos e escuros sobrevoando o mar gélido. O canto melancólico dessas aves. Mas não.  Seu sonho havia perdido o trem da modernidade. Balbec, a da vida real, tinha um hotel à beira mar, repleto de turistas em férias. Sim, Alain de Botton estava certo ao dizer que quando o adolescente Marcel foi a Balbec pela primeira vez, saiu de casa com as imagens erradas na cabeça.

O que eu queria ver? Torre? Não.  Até queria ver sim, mas não apaixonadamente. Arco? Também não tinha nada a ver com meus afetos. Trocadéro? Ah, eu nem sabia o que era isso. Notre Dame? Talvez. Combinava mais com um certo misticismo que desconfio existir em mim.

Depois de muito ruminar cheguei a algumas conclusões. Quando Raquel me perguntou a respeito do que eu queria ver em Paris, eu disse: “Quero ir ao Pèrre Lachaise, ver o túmulo do Proust; quero encontrar os livros de Anne- Marie de Backer e, se possível, quero entrar na Saint- Chapelle.”.

É claro que a ordem aqui não importava: uma vez que eu faria tal viagem, ver o túmulo de Proust ou encontrar a poesia de Anne-Marie de Backer tinha a mesma urgência para mim. Nossa viagem se estenderia também à Londres , e meu único desejo ali, era conhecer a Galeria dos sussurros, que fica na Igreja de Saint Paul e é famosa por sua acústica “impressionante”.

II
Anne- Marie de Backer.

Conheci Anne Marie de Backer um ano antes da viagem, lendo um livro do Bachelard, chamado A Poética do devaneio. Lindo, lindo livro. Num capítulo intitulado “O cogito do sonhador”, fui ferida de morte por esses versos dela:

Deixou-me tudo o que preciso para viver:
Seus cravos negros e o seu mel no meu sangue

 E ainda:
A begônia de prata se desfolha no fundo das fábulas

Desfaleci.  E é claro que saí a procura de poemas inteiros dela, pelas tão bem sinalizadas avenidas da internet.

Nada. Apenas algumas informações biográficas, entre as quais estavam incluídos os nomes de suas obras de poesia. Nomes que me deixaram ainda mais inquieta, imersa em uma espécie de angústia que a gente só tem quando há a promessa de uma beleza desconhecida, e o desejo que tal beleza venha conversar com nossas feridas, com nossa orfandade, com nossa incurável solidão. A dança do cisne negro; As estrelas de novembro; O vento das ruas; A  erva e o fogo; A dama de Elche; Estrela Lúcifer; Urtigas com chamas azuis; O Sol da ventania...

Sonhei, sonhei muito com esses títulos, publicados entre os anos de 1952 e 1975.

Depois da decepção com o Google (o oráculo de Delfos da pós-modernidade) por causa de seu quase silêncio diante do desespero de minha busca, decidi procurar as obras para compra on-line.  Visitei sites de livrarias francesas, visitei o site da editora que publicou os livros de Backer, tentei a loja virtual da FNAC francesa e até apelei para a Amazon. Nada. Ou melhor, pouco, muito pouco: apenas um livro de crítica sobre sua poesia, o qual não me interessava.

Esqueci por um tempo Anne- Marie de Backer, como se esquece do olhar de alguém que desceu do metrô numa estação antes da gente, fazendo a gente pensar seriamente sobre universos paralelos, enquanto uma chuva fina cai sobre os trilhos, e faz doer com mais força em algum lugar, dentro, a saudade do que nunca existiu.

Quando a possibilidade da viagem surgiu, o desejo retornou impaciente. Eu sabia que o túmulo do Proust estaria lá onde havia sido colocado; sabia que a Saint-Chapelle não tinha migrado para a Ucrânia e sabia que em Londres, a cúpula da Saint Paul estaria a minha disposição, desde que eu estivesse disposta a pagar 6 libras por um ingresso. Mas, e minha poeta? Eu a encontraria?

Em Paris os dias não foram os mais felizes da minha vida. Fui acompanhada, durante todo o período  de estada na cidade, por uma velha dor de coluna, que não me importunava já há algum tempo. Minhas caminhadas eram sofridas, caminhadas de dia inteiro, uma via- sacra de museus e monumentos, sentindo algo deslocar-se na região dos meus quadris.

Foi bonito ver o túmulo do Proust; fiquei em silêncio, emocionada. Quase desmaiei na Saint Chapelle quando entrei na nave, cujas paredes são constituídas somente por belíssimos vitrais, por onde a luz passa, virando puro sonho, lá dentro. E quando fui à Londres, me decepcionei muito com a galeria de acústica “incrível”. Mas isso é outra história.

O fato é que, em Paris, outra dor veio andar de mãos dadas com os lastimáveis sofrimentos de meu corpo: não encontrei os livros de poesia de Anne-Marie de Backer.

Era dramática a forma como eu percorria a Rive Gauche, passando por cada barraca verde, onde livros carcomidos estavam expostos.  “ Bon jour! Je cherche des livres de Anne-Marie de Backer”; “ Vous avez des livres de Anne-Marie de Backer?”,perguntei, ínumeras vezes, num tímido, mas bem pronunciado francês. As respostas negativas pareciam fazer minha dor lombar ficar mais forte. Um dos vendedores, simpático senhor de boina e colete, me disse que era difícil mesmo, encontrá-la. “Talvez no Quartier Latin”, ele disse.

No dia seguinte fomos ao lugar indicado . Eu e Raquel entramos em grandes e pequenas livrarias. E o mais incrível é que os vendedores nem sabiam quem era a poeta. Uma moça até me perguntou: “Cette poétesse que vous recherche... Elle est française?”. “Oui, oui”. Eu respondia, com o coração cada vez mais vazio.

Enfim, voltamos para casa, com a mala cheia de discos, de livros de arte, de perfumes e de lembrancinhas para os queridos. Anne- Marie de Backer deve ter ficado no fundo de alguma caixa de livros amontoados, que eu não tive tempo de revirar...

No Brasil, ainda procurei por ela. E encontrei. Num site de uma “agência- detetive”, cuja missão é encontrar livros raros espalhados pelo mundo afora e vender para desesperados, como eu, pelos olhos de nossas caras. O mais barato era a Dança do Cisne negro, numa publicação em formato de periódico, com míseras 28 páginas. Preço: 200 reais.

Confesso quase ter caído em tentação. No entanto, a experiência de algumas pequenas tragédias afetivas foi o suficiente para que, após longos processos de cicatrização, eu começasse a olhar com mais desconfiança para os excessos do amor.


Hoje, Anne-Marie de Backer é, para mim, apenas mais um vitral estilhaçado na minha catedral de saudades.

8 comentários:

Dora Delano disse...

talvez num sebo francês, ou mesmo se conectar com alguém que estude a literatura francesa na Sorbonne.

Os meios de encontrá-la ainda não se esgotaram...

Cleide Fernandes disse...

Que texto delicioso, Simone. Também tenho alguns problemas com viagens. Os meus construídos a duras penas por mim mesma. E acabei gastando centenas de reais com terapia esperando resolver. Não dá pra resolver, dá pra viver. E é isso que você fez e que eu pretendo fazer, algum dia.

Simone Teodoro disse...

Dora... depois dessa choradeira minha toda, um ano depois das decepções, acho que encontrei, por preços mais em conta... Ainda hesitei, mas fechei o pedido. Ainda falta confirmação....

Simone Teodoro disse...

Cleide,
obrigada!
Algum dia não!!!!!!
Que tal nas próximas férias? Hein?

Samuel Medina (Nerito Samedi) disse...

Oi Si. Puxa, fico sem palavras diante do lirismo que você expressa em seus textos. O jogo de palavras é delicioso. E quando você foi pra metafísica, fiquei arrepiado:

"Esqueci por um tempo Anne- Marie de Backer, como se esquece do olhar de alguém que desceu do metrô numa estação antes da gente, fazendo a gente pensar seriamente sobre universos paralelos, enquanto uma chuva fina cai sobre os trilhos, e faz doer com mais força em algum lugar, dentro, a saudade do que nunca existiu."

Quantas vezes isso aconteceu comigo!

Bem, tirando a rasgação de seda, vc sabe que eu gosto muito dos seus textos, sempre gostei. Acho que esse post certamente daria um romance incrível. E por falar em romance, ainda espero a continuação do "O monstro do armário", viu?

M Mawkitas disse...

Muita coisa bacana no seu post, mas me chamou a atenção que seus dias em Paris não tenham sido os mais felizes da sua vida. Viajei recentemente para Buenos Aires, viagem típica de quem mora no sul. Foi bom mas foi o caos!!!!

O salto da minha bota soltou no meio de uma longa caminhada. O salto do outro pé soltou logo após. Uma sapatilha abriu e se desfez (que ódio!) e no terceiro dia eu andava sentindo dores excruciantes nos meus dois pés, usando alpargatas super simples e confortáveis que comprei na mão de um sapateiro que tinha uma lojINHA ao lado do hotel. Foi a melhor coisa que eu fiz, mas meus pés já estavam tão feridos que eu torcia por passeios em que eu pudesse ficar sentada. Pra piorar, no dia que cheguei a Buenos Aires desenvolvi a sinusite mais grave da minha vida... tive febre, fiquei gripada ao mesmo tempo e tentava fazer cara de feliz (eu tenho uma alma de Pollyana, credo!) e passear. Rsrsrsrs... Apesar disso, consegui achar todos os livros de Borges, então meu sofrimento foi muito mais superficial do que o seu....

Enfim, só quis compartilhar essas pequenas desgraças... daria pra escrever um romance só falando de tudo que deu errado, mas a viagem acabou sendo ótima.

Simone Teodoro disse...

Marina de Deus! Quanta coisa chata! E o pior é que a gente, muitas vezes, acaba depositando expectativas nessas viagens, não é? Eu pelo menos sou assim... Mas tenho tentado mudar. E acho que tenho conseguido: fui, em maio a Santiago do Chile e foi lindo.
Acho que é porque não tínhamos a obrigação de fazer um milhão de coisas, como em Paris...Então foram dias frios, românticos, cheios de lirismo... Fico até com saudades quando me lembro... Quando você falou sobre o quanto seus pés ficaram machucados com os passeios, me lembrei de minha volta de Londres ( a gente aproveitou a estada em Paris e foi a Londres, de trem, dar uma volta rápida pela cidade, para poder voltar na tarde do mesmo dia). Eu já estava com dor de coluna, aí apareceu uma dor no tornozelo. Era deprimente minha situação, quando regressamos de noite: Raquel andando apressada a minha frente e eu, mancando, implorando pra ela me esperar! rsrsrsrs. Quando voltamos pra casa a primeira coisa que eu fiz foi ir atrás de um fisioterapeuta. Então foram muitas sessões...
Mas, apesar de tudo, guardo boas lembranças. Eu trouxe um perfume muito gostoso de lá, e toda vez que o uso, é como se aquelas belas manhãs frias da primavera parisienses entrassem pelas minhas narinas junto com o perfume...

E irei mês que vem para Buenos Aires! Se você tiver a dica de algo que seja imperdível por lá....

Gostei demais de compartilhar essas pequenas desgraças com vocês e também as nostalgias...

Grande abraço!

Simone Teodoro disse...

Com você... rsrsrs