Não falo das
criaturas encardidas que perambulam como mortos-vivos pelos caminhos urbanos,
muitas das quais, em suas vestes quase bíblicas (que bem poderiam ser restos de
túnicas de profetas do velho testamento, corroídas pela ação inexorável dos
milênios), possuem o aspecto mineral das rochas escuras e impenetráveis. Não falo
também de outra categoria de mendigos, a que é vegetal, cujas pernas se
assemelham a grossos troncos tomados por lodo e líquens; cujas unhas compridas têm
a aparência de raízes de árvores ancestrais e cuja cabeleira, enroscada de
galhos, folhas e ninhos de pássaros,se comporta como se estivesse na cabeça de
um antigo fauno.
Falo de mim
e de um cão de raça indefinida que, certa noite, quis tornar-se minha sombra,
enquanto eu protegia meus olhos das travessuras de uma nuvem de poeira excitada
pela impetuosidade do vento, que anunciava tempestades.
Naquela
noite, na rua por onde eu passava, só havia a movimentação dos carros, o meu
caminhar apressado e amedrontado e os passos do cachorro atrás de mim.
Até que tentei fugir, mas de nada adiantou
andar mais depressa: sua velocidade se adequava à minha; ele tinha pernas
compridas, patas grandes. Parecia estar faminto, mas tinha ainda muita energia
para tal perseguição.
E assim
continuamos: eu caminhando, protegendo os olhos com as mãos,e o cão no meu
encalço, rápido como eu, mas de cabeça baixa, como se estivesse com vergonha.
Isso durou até a chegada ao portão de grades de minha casa.
Quando parei
para pegar as chaves, o cão parou ao meu lado. Olhei para ele. Ele me olhava
também, com parte considerável da língua para fora daquela enorme boca que
babava.
“Oi, Au-Au,
nessa humilde casinha só cabem eu e eu. Você infelizmente vai ter que voltar para
seu canil, ou para seu dono malvado que te deixou sozinho nessa noite
esquisita, ou sei lá, para país dos cachorros abandonados”, eu disse.
O desgraçado
balançou o rabo, e como todo mundo sabe, cachorro balançando o rabo quando ouve
a voz da gente significa cachorro
sorrindo pra gente.
“Esse castelo
de pulgas riu pra mim. Estou fodida”. Pensei, enquanto terminava de destrancar
o portão. Os olhos sorridentes do cão sem dono pediam.
Antes de
subir as escadas, ainda pude ver, através das grades, aquela cara que implorava.
Solenemente fingi indiferença. Um banho quente me esperava.
No aconchego
do lar, após um dia cansativo, tudo estaria a salvo se não fosse o espinho
no dedo em formato de olhar de cachorro, me atravessando a carne.
Então,
algumas horas depois (eu já estava de pijama e de luzes apagadas) uma coisa
forte como o vento me impeliu para fora da cama, me fez caminhar até a porta da
sala, me fez descer as escadas e olhar através das grades do portão.
Ele ainda
estava lá, me esperando na ventania.
Deixei-o
entrar. Subimos até à cozinha. Na geladeira encontrei pedaços de carne
congelada há muito tempo, que eu jamais comeria.
Enquanto
acionava os comandos do microondas e esperava o tempo necessário, olhei de novo
para o cachorro, cujo sorriso nos olhos havia se transformado em agradecimento.
Ficamos nos confrontando, silenciosos. A noite cantava, lá fora, as desarmonias
inquietas de ventos de tempestade.
Lembrei-me
de cenas muito antigas: numa delas eu esperava que meu pai viesse me salvar de
uma melancólica noite de Natal. Naquela triste época de privações sempre havia a
esperança de que o retorno do pai a casa fosse coroado com o alimento
conquistado com o suor de seu trabalho.
Ele não
apareceu. Esperei, sentada sozinha numa calçada, de onde era possível ver o fim
da rua,onde ele apontava sempre, virando uma esquina. Como implorei ao sol frio
do fim do dia por aquela presença adorada! Enfim, escureceu e
eu ainda esperava, acreditando. Sei que eu tinha olhos de cão abandonado na
noite. Eu sei.
Outra
lembrança deixou-me triste como a chuva que já cuspia seu caos no silêncio da madrugada:
minha mãe, num domingo remoto, me prometeu o paraíso. Prometeu que ficaríamos ricas; bastava que
fizéssemos as malas e viajássemos para a cidade onde ela havia nascido. Uma
caravana viria nos buscar e nunca mais teríamos fome.
Fiquei
abraçada à mala durante todo o domingo, no início, com a euforia de toda espera
feliz, depois, no fim da tarde, com o aspecto de uma rosa morta.
Esse foi meu
rito de passagem. Cresci. Só mais tarde, quando soube que doenças mentais
existiam, pude perdoar minha mãe.
E quantas
vezes se repetiu em minha vida adulta esse triste processo que transforma
perfumes de sonhos em enterros de flores?
Havia um
cachorro na minha cozinha, me fitando com olhos marejados de amor. Eu Atirava-lhe
pedaços de carne, pelos quais ele agradecia, com seu sorriso de balançar de
rabo. Eu era sua deusa.
Hoje fico pensando sobre sua raça. Seria um
fila? Talvez. Mas, é estranho, certa vez li que filas são extremamente amáveis
com os donos, e proporcionalmente agressivos com estranhos. Aquele era dócil
como um vira-latas.
A solidão e
a falta podem transformar até mesmo os mais aristocráticos pedigrees.
2 comentários:
tão curioso eu terminar de ler esse post, logo após uma conversa ao telefone em que uma grande amiga me confessa que queria adotar a gata que agora habita as áreas comuns do seu prédio. Ela me contou que essa decisão vinha dos olhos insistentes da gata pedindo comida toda vez que a via...
Fico encantado com o seu jeito de dar vida aos mais triviais acontecimentos. Quem já não passou por isso? E quantos de nós simplesmente continuamos ignorando o ser vivo suplicante que tenta se comunicar com a nossa solidão interior?
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