Quando eu era adolescente gostava de anotar minha vida em diários. Guardo comigo muitos deles, num saco plástico, no fundo do armário.
E era regra: na última página , a do dia 31 de dezembro, eu registrava uma espécie de balanço anual, com retrospectivas e avaliações.
Tentei manter tal hábito na vida adulta, mas fracassei. Ou melhor, continuo fracassando,pois ainda insisto em comprar , a cada início de ano, uma nova agenda, que logo abandono.
Minha agenda-diário do ano que acabou de acabar só foi rabiscada até o mês de maio. Depois disso as anotações que há nela se resumem a lembretes de reuniões chatas de trabalho e de tarefas mecânicas.
Mas vamos ao que ficou na memória, não necessariamente em ordem cronológica, com ou sem anotações:
Terminei o Proust ( que ainda reverbera dentro do meu corpo e acho que isso vai ficar acontecendo até o meu último dia de vida nessa bosta de mundo que de vez em quando é tão bonito que chega a doer).
Reclamei até: de problemas conjugais dos mais variados; de menstruação, de cólicas e de outras dores do feminino; do trânsito; da falta de tempo pra ser feliz, por causa do trabalho.
Assisti a filmes, mas como não anotei, não me lembro de todos. Nada que me fizesse ficar chapada. Vi muitas coisas dos primórdios do cinema: Lumières, Meliès, Griffith. Vi Cabíria, O grande roubo do trem, essas coisas. Vi também uma dezena de filmes do Hitchcock e descobri que é muito mais divertido procurá-lo em seus filmes do que procurar o Wally no meio da multidão desenhada naqueles livros infantis. E por falar em Wally, vi Medianeras e achei uma fofura.( Quando fui à Argentina, entrei naquele planetário e foi lindo).
Em maio fui ao Chile. Visitei Santiago, subi cerros, caminhei pela
Alameda, comi deliciosamente frutos do mar no mercado central da cidade. Fui à Cordilheira dos Andes, fiz guerra de neve,tirei fotos lindíssimas, dormi num quarto com calefator, fui à Viña del Mar, onde mergulhei meus pés, com tênis e tudo, no gelado Pacífico e caminhei com Raquel por praias maravilhosas. No mesmo dia partimos para a exótica Valparaíso, a cidade dos curiosos astensores, que levam para os cerros em profusão. Fomos de ônibus a uma das casas de Neruda, na parte alta da cidade, de onde se vê o porto lá embaixo e barcos indo embora. Na estação de ônibus, quando esperávamos para retornar a Santiago, Raquel sorriu para mim, enquanto tomava um café-expresso. Fazia frio. E o sorriso dela me fez sonhar com o quarto, com a noite, com os cobertores e com o corpo dela dando sentido à existência do meu.
A viagem acabou. E com ela, as férias. E ao retornar fui surpreendida pela ameaça da perda, quando ao visitar minha mãe encontrei-a em meio a uma crise respiratória, agravada por um forte resfriado, um enfisema pulmonar e sinais de insuficiência cardíaca.Os dias que se seguiram foram os piores do meu ano. Foi uma semana inteira de enfermaria, vendo minha mãe enfraquecida ( ela que sempre foi meu exemplo de força), nervosa, brigando comigo quando eu fechava a porta do banheiro , ou diante de minha excessiva preocupação com a borracha do soro, que ela arrancava toda vez que se levantava.
Depois ela voltou para casa e foi minha vez de ficar doente: a pior gripe da minha vida, até hoje. Dias sem pronunciar uma palavra, por causa da afonia. Provavelmente resultado das noites de vigília naquela enfermaria gelada. Foi a parte do ano em que mais tive medo.
Depois passou. E maio, finalmente acabou.
Li muita poesia. Pizarnik e Backer chegaram para mim da Colômbia e da França, respectivamente.
Quase não li quadrinhos. ( Um Moebius, foi o que li de melhor). E Li Lucille também. Ah, e teve a HQ Vó, do Jean, que a Raquel me apresentou e pela qual me apaixonei.
Não vi nenhum Bergman. Vi um Ozu. As melhores coisas que li: As ondas, da Virgínia e A caixa preta do Amóz Oz. Não li os meus Lobos Antunes que me aguardam na estante. E tem também uma coleção inteira da Virgínia me esperando.
O fato é que a seleção do Mestrado deste ano me privou de muitas leituras e de muitos filmes...Mas no fim deu certo.
Fui ao show do Morrissey. A acústica estava péssima, decepcionante... Fui ao show do Bob Dylan e fiquei emocionada com a energia daquilo. Fui ao show do Kid Abelha e desejei chegar aos 50 com as pernas da Paula Toller. Fui ao show da Shirley King e descobri que alegria é possível.
Visitei Buenos Aires. Entrei no planetário do filme Medianeras. Explorei a cidade a pé, com Raquel, a infatigável, do Boca ao Palermo. Numa dia de briga, comemos bondiola de cerdo con papas, tomamos vinho e voltamos bêbadas, felizes e reconciliadas para o hotel.
Ouvi blues o ano inteiro.
O trabalho continua sugando a poesia da minha vida.
Mas a música traz a poesia de volta.
Por isso, bem no finzinho do ano, comprei uma gaita.
E como os negros do Delta do Mississippi eu vou cantando pra suportar as tristezas.
Que venha 2013!
Um comentário:
Não acredito que ninguém comentou este ano com você, Simone, esse balanço incrível de uma vida de tantos sabores. Sim, há os dissabores, mas você consegue transformar a tristeza numa beleza dolorida, pungente, significativa. Os momentos de maior beleza no seu texto estão justamente do meio para o final, em que você dá quase um tom de tópico ao dizer sobre (re)descobertas. E assim sua escrita assume um tom poético e quase profético. Bonito.
Mais uma vez, você deixa claro como a música permeia e dá uma firmeza surpreendente à sua vida. É uma coisa que chega a ser mágica. E algo que entendo. Afinal, em muitos momentos a música trouxe de volta a poesia também.
Que venha 2013!
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