terça-feira, janeiro 01, 2013

Diários e fins de ano

Quando eu era adolescente gostava de anotar minha vida em diários. Guardo comigo muitos deles, num saco plástico, no fundo do armário.
E era regra:  na última página , a do dia 31 de dezembro, eu registrava uma espécie de balanço anual, com retrospectivas e avaliações.
Tentei manter tal hábito na vida adulta, mas fracassei. Ou melhor, continuo fracassando,pois ainda insisto em comprar , a cada início de ano, uma nova agenda, que logo abandono.
Minha agenda-diário do ano que acabou de acabar só foi rabiscada até o mês de maio. Depois disso as anotações que há nela se resumem a lembretes de reuniões chatas de trabalho e de tarefas mecânicas. 

Mas vamos ao que ficou na memória,  não necessariamente em ordem cronológica, com ou sem anotações:


Terminei o Proust ( que ainda reverbera dentro do meu corpo e acho que isso vai ficar acontecendo até o meu último dia de vida nessa bosta de mundo que de vez em quando é tão bonito que chega a doer).

Reclamei até: de problemas conjugais dos mais variados; de menstruação, de cólicas e de outras dores do feminino; do trânsito; da falta de tempo pra ser feliz, por causa do trabalho.
Assisti a filmes, mas como não anotei, não me lembro de todos. Nada que me fizesse ficar chapada. Vi muitas coisas dos primórdios do cinema: Lumières, Meliès, Griffith. Vi Cabíria, O grande roubo do trem, essas coisas. Vi também uma dezena de filmes do Hitchcock e descobri que é muito mais divertido procurá-lo em seus filmes do que procurar o Wally no meio da multidão desenhada naqueles livros infantis. E por falar em Wally, vi Medianeras e achei uma fofura.( Quando fui à Argentina, entrei naquele planetário e foi lindo).

Em maio fui ao Chile. Visitei Santiago, subi cerros, caminhei pela 


Alameda, comi deliciosamente frutos do mar no mercado central da cidade. Fui à Cordilheira dos Andes, fiz guerra de neve,tirei fotos lindíssimas, dormi num quarto com calefator, fui à Viña del Mar, onde mergulhei meus pés, com tênis e tudo, no gelado Pacífico e caminhei com Raquel por praias maravilhosas. No mesmo dia partimos para a exótica Valparaíso, a cidade dos curiosos astensores, que levam para os cerros em profusão. Fomos de ônibus a uma das casas de Neruda, na parte alta da cidade, de onde se vê o porto lá embaixo e barcos indo embora. Na estação de ônibus, quando esperávamos para retornar a Santiago, Raquel sorriu para mim, enquanto tomava um café-expresso. Fazia frio. E o sorriso dela me fez sonhar  com o quarto, com a noite, com os cobertores e com o corpo dela  dando sentido à existência do meu.


A viagem acabou. E com ela, as férias. E ao retornar fui surpreendida pela ameaça da perda, quando ao visitar minha mãe encontrei-a em meio a uma crise respiratória, agravada por um forte resfriado, um enfisema  pulmonar  e sinais de insuficiência cardíaca.Os dias que se seguiram foram os piores do meu ano. Foi uma semana inteira de enfermaria, vendo minha mãe enfraquecida ( ela que sempre foi meu exemplo de força), nervosa, brigando comigo quando eu fechava a porta do banheiro , ou diante de minha excessiva preocupação com a borracha do soro, que ela arrancava toda vez que se levantava.
Depois ela voltou para casa e foi minha vez de ficar doente: a pior gripe da minha vida, até hoje. Dias sem pronunciar uma palavra, por causa da afonia. Provavelmente resultado das noites de vigília naquela enfermaria gelada. Foi a parte do ano em que mais tive medo.
Depois passou. E maio, finalmente acabou.

Li muita poesia. Pizarnik e Backer chegaram para mim da Colômbia e da França, respectivamente.

Quase não li quadrinhos. ( Um Moebius, foi o que li de melhor). E Li Lucille também. Ah, e teve a  HQ Vó, do Jean, que a Raquel me apresentou e pela qual me apaixonei.
Não vi nenhum Bergman. Vi um Ozu. As melhores coisas que li: As ondas, da Virgínia e A caixa preta do Amóz Oz. Não li os meus Lobos Antunes que me aguardam na estante. E tem também uma coleção inteira da Virgínia me esperando.
O fato é que a seleção do Mestrado deste ano me privou de muitas leituras e de muitos filmes...Mas no fim deu certo.
Fui ao show do Morrissey. A acústica estava péssima, decepcionante... Fui ao show do Bob Dylan e fiquei emocionada com a energia daquilo. Fui ao show do Kid Abelha e desejei chegar aos 50 com as pernas da Paula Toller. Fui ao show da Shirley King e descobri que alegria é possível.
Visitei Buenos Aires. Entrei no planetário do filme Medianeras. Explorei a cidade  a pé, com Raquel, a infatigável,  do Boca ao Palermo. Numa dia de briga, comemos bondiola de cerdo con papas, tomamos vinho e voltamos bêbadas, felizes e reconciliadas para o hotel.
Ouvi blues o ano inteiro.
O trabalho continua sugando a poesia da minha vida. 
Mas a música traz a poesia de volta.
Por isso, bem no finzinho do ano, comprei uma gaita.
E como os negros do Delta do Mississippi eu vou cantando pra suportar as tristezas.

Que venha 2013!



Um comentário:

Samuel Medina (Nerito Samedi) disse...

Não acredito que ninguém comentou este ano com você, Simone, esse balanço incrível de uma vida de tantos sabores. Sim, há os dissabores, mas você consegue transformar a tristeza numa beleza dolorida, pungente, significativa. Os momentos de maior beleza no seu texto estão justamente do meio para o final, em que você dá quase um tom de tópico ao dizer sobre (re)descobertas. E assim sua escrita assume um tom poético e quase profético. Bonito.
Mais uma vez, você deixa claro como a música permeia e dá uma firmeza surpreendente à sua vida. É uma coisa que chega a ser mágica. E algo que entendo. Afinal, em muitos momentos a música trouxe de volta a poesia também.

Que venha 2013!