terça-feira, abril 01, 2014

Flores que já secaram

Hoje, antes de sair para o trabalho, passei nos cabelos uma loção anti-frizz que tinha cheiro de flores mortas.
Me lembrei, enquanto me olhava no espelho e registrava o nascimento de mais uma marca de expressão, de meus diários juvenis, cujas páginas exalavam o mesmo perfume: eu costumava depositar entre elas flores inteiras, as quais eram esmagadas quando meus segredos se fechavam, sufocando-as. Dias depois a flor despetalada e seca impregnava de um odor triste de saudade meus rabiscos quase ilegíveis.
Anos antes, tinha sido a época das tardes no cemitério. Brincávamos, nos escondendo atrás de túmulos, conversávamos com o coveiro, enquanto ele abria a boca vermelha da terra e ficávamos silenciosos e graves nas horas de enterro. Eram tardes de sol forte. Pisávamos em cima da morte, ríamos de sua pretensão de sempre nos roubar alegria.
Em todo aquele grande terreno, sobre cada demarcação, no ar que por ali circulava, predominava o cheiro das flores fenecidas. ( Desconfio de que minha melancolia atual tenha nascido ali. Tenho quase certeza de que ela tem a ver com o cheiro das flores mortas).
Eu tinha quase 30 anos quando o pai morreu.
Foi uma madrugada estranha aquela, em que me afastei demasiado da sala de velório e fiquei caminhando em círculos sobre lápides, como se quisesse rir da morte outra vez.
Mas eu não podia.
Ao amanhecer o pai continuava morto e as flores que enfeitavam seu peito gelado já haviam secado.
E o cheiro estava lá, devorando todas as coisas.

2 comentários:

Dora Delano disse...

nada povoa [assombra?] mais as lembranças que o cheiro.

Edu Café disse...

Belíssimo.