“Que cara inchada é essa,
Marina?” Me pergunta o idiota do Lu. Indivíduo mais babaca. Se acha o rei do
contrabaixo, e o homem mais lindo de toda Belo Horizonte. È um dos integrantes
de plástico da minha banda de plástico. E me disse essa gracinha sem graça, só
porque estava perto de uma garota de peitos grandes, que provavelmente daria
pra ele no fim do expediente. Os outros nem me cumprimentaram. Reclamaram do
meu pequeno atraso de 30 minutos, dizendo que eu estava comprometendo o
trabalho deles, e que se não quisesse continuar tocando, iriam contratar outra
saxofonista. Como não queria me aborrecer mais uma vez, fiquei calada.
Fizemos nosso showzinho medíocre
de quinta-feira, na mesmice de sempre: Luzes de boate, fumaça de cigarro,
casais no cio, bandejas de garçons flutuando sobre cabeças chacoalhantes que
ficavam escuras e coloridas alternadamente. E eu ficando enjoada de tudo, de
vez em quando, e me refugiando atrás da escuridão de meus olhos fechados. E
soprando meu sax, com toda a paixão de meu espírito inquieto.
Às vezes, algum cara babão ficava
me olhando com uma cara esquisita, achando que estava fazendo uma expressão sedutora.
Uma cara ridícula de demente. Então eu fechava os olhos mais forte ainda, e
tentava me concentrar na minha música. Quando eu abria os olhos, o cara babão
já estava lá, enfiando a língua dele na boca de alguma garota de saia curta.
A música sempre foi minha salvação.
Depois do expediente, o pessoal
sempre fica numa mesa tomando cerveja. Ficam lá, se embebedando e tentando
seduzir as tietes. E isso eles fazem com facilidade, porque, é incrível como as
garotas ficam impressionadas e se sentem atraídas por gente que sobe em
palcos.(Mais especificamente,por garotos que sobem em palcos para tocar, porque
nunca vi elas rasgarem calcinhas por causa do rapaz que monta o som,ou por
causa do menino que varre a sujeira que nós deixamos lá em cima)).Eu vou-me
embora para Parságada, porque tenho faculdade todas as manhãs, sempre no
horário absurdo dos padres, como na época do colegial. Saio sem me despedir,
como sempre.
Adeus, por hoje, mundo de
plástico.
Caminho rumo á estação de metrô.
Na Rua da Casa Noturna tem uma boate gay. Sempre que passo por ali, voltando do
trabalho, vejo muito movimento, a música é envolvente, e muitas vezes, tive
vontade de entrar. Mas não sei o que eu faria sozinha num lugar assim, então
nunca entrei.
Hoje vi uma cena diferente, que
me chamou a atenção: duas garotas discutiam. Uma delas tinha o cabelo raspado,
e tatuagens por todo o corpo. Usava uma camiseta preta e tinha espetos
metálicos na língua, nas orelhas e no nariz. Muitos espetos metálicos. Parecia
muito brava e insensível, enquanto a outra, que tinha belos cabelos ondulados e
longos, e uma pele maravilhosamente morena, chorava.
Fiquei o resto do caminho
pensando no motivo daquela cena. Por que estariam assim, tão transtornadas?
Fiquei com vontade de estar no lugar da moça careca. Eu não estaria tão brava,
e em vez de ficar com a cara amarrada, teria abraçado a bela garota que
chorava.
O metrô veio vazio, como em todas
as noites. Fiquei olhando a paisagem noturna. O vento estava frio. Junho se
aproximava.
Cheguei em casa mais deprimida do
que sempre. Abri um pacote de biscoitos e me sentei na frente da TV desligada.
Hamlet me olhava com os olhos tristes e doentes dos cães que sabem que vão
morrer. Senti uma coisa estranha. Uma tristeza tão funda e cortante! Senti-me
infeliz, e pressenti as saudades que eu teria do meu cachorro, assim que ele
morresse, e senti também, meio que inconscientemente, que ele era uma espécie
de elo que me unia a outra época da minha vida, época que insistia em ficar
apodrecendo em mim, como um enorme e feio cemitério abandonado.
Sussurrei delicadamente seu nome,
venerado desde minha primeira leitura de Shakespeare, e ele se levantou, todo
murcho, com as orelhas caídas, com os olhos tão pesados de morte, literalmente
com o rabo entre as pernas, e magro como judeu em Auschwitz, e se entregou
dócil às minhas tristes carícias. Os meus olhos e os dele estavam úmidos. E
pensei: “estou acariciando a morte”. “Isso é morte, esses olhos tristes de cão
doente.”
Em seguida, depois de minutos
intermináveis chorando antecipadamente a morte de Hamlet, caminhei pesadamente
para o quarto. Dormi sem escovar os dentes, e sonhei que eu era uma arqueóloga,
que abria sarcófagos, onde se encontravam os lascivos poemas de Safo. Em um dos
sarcófagos estava escrito “Átis”. Me lembro
de , no sonho, ter ficado excitada com o ideia de conhecer a tão famosa amada
de Safo, mesmo que decomposta.Quando abri a tampa do antigo esquife,lá estava
Claudia, com uma plaquinha que dizia “ me mate em seu coração”.
Acordei sobressaltada.
3 comentários:
Ainda tem mais, né? Espero as partes de recordações, um pouco mais do que Marina é, um pouco da sua caminhada nessa adolescência que descobre diferenças.
Sua personagem carrega uma melancolia que me lembra personagens anteriores, antigas, narradoras de tempos idos. Época em que uma menina aturdida com o mundo deixava claro que sentia que havia alguma coisa de errado.
Acho que essa percepção está presente também na voz de Marina, reclamando da superficialidade dos seus colegas de banda. Tão fácil ser de plástico! Tão fácil ficar pronto em 5 minutos no microondas!
Uma sociedade congelada, uma sociedade fast food.
Enquanto isso, o que realmente importa está enterrado, escondido, pedindo para morrer!
Samuca, essa melancolia, fruto da modernidade que nos dilacerou, é uma herança maldita.
É verdade: tem alguma coisa morrendo em nós: como disse Clarice: "tão jovem e já com ferrugem"...
Ou, como disse o Renato Russo : " E há tempos são os jovens que adoecem..."
O Rodrigo me indicou esse blog, depois de ter escrito um texto em que incluia a sua Marina. Gostei.
Aliás, posso dizer que tenho estado perdida entre os textos de Rodrigo e de Nerito desde que esbarrei com eles por essas incontáveis incursões no mundo digital.
Acho que já estive aqui em outra ocasião. A memória não é meu forte. Voltarei. =)
Bjo Bjo
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