Dia desses vi Samuel Medina ficar perplexo diante de minha resposta negativa a uma pergunta sua. A pergunta era: " Si, você queria viver de literatura?"
Bem, de certa forma eu já vivo pois , até onde eu saiba, não é todo graduado em letras que pode afirmar ser um TNS-Literatura, ou traduzindo em miúdos, um Técnico de Nível Superior cuja especificidade é trabalhar com a leitura literária.
Tudo bem, ao dizer "viver de literatura", não era disso que ele falava. Estava, é claro, se referindo ao ato de escrever e toda a paixão relacionada a ele; se referia ao sonho de ficar o dia inteiro na frente do computador inventando histórias, pensando atravessado, evocando belezas. E recebendo por isso. Se tornar conhecido, entrar para as listas do cânone, ser reverenciado, amado pelos estudantes de letras,etc,etc,etc.
Eu disse que não queria. Eu disse que não podia. Eu disse que nunca esperei por isso.
Se trata de simples apego ao chão onde piso: pelo pouco que pude sentir, o mercado é demasiado castrador: exigências e mais exigências e a poda de parte de nossos sonhos, censurados pela patrulha do politicamente correto. E há também a arrogância dos que já escrevem para ganhar dinheiro: muitos parecem crer que são a autêntica reencarnação de uma entidade (uma verdadeira trindade) denominada MachadodeAssisGuimarãesRosaClariceLispector.
Preciso deixar claro que nada tenho contra o mercado: sem ele os livros não teriam chegado às bibliotecas onde me nutri a vida inteira. Mas escritores metidos são uma merda muito fedida. Eu os detesto.
Preciso deixar claro que nada tenho contra o mercado: sem ele os livros não teriam chegado às bibliotecas onde me nutri a vida inteira. Mas escritores metidos são uma merda muito fedida. Eu os detesto.
Embora eu tenha alguns pré-requisitos, como ser sapatão (e não tenha outros- é bom lembrar!- como ser feia,) eu seria uma péssima escritora, enfim, há muita concorrência, falta de mecenato e, o mais importante: muita incompetência para as histórias. Sim: não sou boa de histórias, além do mais. Quando as invento, elas são bem fuleiras, não têm força. Sou boa mesmo é em remoer a minha história, cutucando as grandes chagas vermelhas das minhas pequenas tragédias pessoais. E sei também extrair sonhos de canções encharcadas de melancolia. Mas minhas tragédias e meus sonhos interessam a poucos e, por isso, se eu fosse tentar competir no mercado, certamente morreria de fome.
Escrevo para que alguns leiam e amem as belezas que moram em mim. E além disso, escrever vez ou outra é como guardar a beleza num pote de vidro, até que ela vire perfume: a juventude, o amor, delicadezas sensuais sob lençois, os excessos da paixão, banhos quentes em noites de outono...
Então, alguémque a gente conhece, ou não, um dia abre o pote e nossa solidão toda invade suas narinas...
Então há comunicação. Mesmo se a gente já tiver morrido.
Queria ganhar muito dinheiro mesmo escrevendo roteiros para as novelas da Rede Globo, porque seria só mais uma trabalho e nada teria a ver com a poesia.
Mas não sei escrever histórias. Só remoer as minhas...
Há um tempo abri um pote de vidro desses bem perfumados.Lá dentro encontrei poemas que venho traduzindo e postando aqui neste blog. No post anterior há três deles: Melodia, O vendo das ruas e Ovelha perdida. Todos de Anne-Marie-de-Backer, poeta Belga ( não é francesa, descobri recentemente), nascida em 1908 e falecida em 1987. Os poemas já postados e os que ainda serão fazem parte da obra Le vent des rues, primeiro livro de Backer, o qual é composto por 15 poemas.
Todos serão traduzidos e disponibilizados aos poucos.
Todos serão traduzidos e disponibilizados aos poucos.
Vamos a eles.. Depois divago mais sobre a sensação de traduzi-los nestes belos dias de ventos outonais...
Migrações
Existe tão
belo país, existe,
De tão doces florestas e hálito de anêmonas;
E olhares felizes que evocam suas tristezas,
E, por vezes, palavras ternas, esmolas.
De tão doces florestas e hálito de anêmonas;
E olhares felizes que evocam suas tristezas,
E, por vezes, palavras ternas, esmolas.
Há navios
que singram para ilhas
Onde os mais negros pássaros têm ouro sobre as asas.
Guardiã cega de tesouros inúteis,
Há caminhos onde a vida é real.
Onde os mais negros pássaros têm ouro sobre as asas.
Guardiã cega de tesouros inúteis,
Há caminhos onde a vida é real.
A Rainha
do Oriente dorme sob as próprias ataduras,
O Amor dorme com ela na outra extremidade da terra.
Quem vai te perdoar por ser quem você é,
e por errar ao vento das praias solitárias?
O Amor dorme com ela na outra extremidade da terra.
Quem vai te perdoar por ser quem você é,
e por errar ao vento das praias solitárias?
Quem vai te perdoar por ser quem você é,
Meus olhos, que você fechou às claridades excruciantes,
E você Sonho ruim, que assusta e que inquieta
A razão, sem piedade para com o segredo dos amantes?
Meus olhos, que você fechou às claridades excruciantes,
E você Sonho ruim, que assusta e que inquieta
A razão, sem piedade para com o segredo dos amantes?
Quem vai
me perdoar quando eu estiver cansada,
Desta jornada febril, onde costumo abandonar tudo o que amo,
Sem nunca encontrar o sol ou as distâncias;
Desta jornada febril, onde eu giro em tono de mim mesma?
Desta jornada febril, onde costumo abandonar tudo o que amo,
Sem nunca encontrar o sol ou as distâncias;
Desta jornada febril, onde eu giro em tono de mim mesma?
Recomeço
Cabelos- de-vênus cor de malva em meio ao trigo,
Nosso luto docemente se prolonga.
Todas as flores que já conversaram comigo
Não me disseram nada além de mentiras
Nosso luto docemente se prolonga.
Todas as flores que já conversaram comigo
Não me disseram nada além de mentiras
Permaneci
fria e serena
Submersa em uma vida onde nada é seguro
Nem a água que se bebe, nem a memória
Daqueles que amamos, nem o azul ultramarino.
Submersa em uma vida onde nada é seguro
Nem a água que se bebe, nem a memória
Daqueles que amamos, nem o azul ultramarino.
Preparei meu
último adeus,
Pois é preciso que se lembre de nós
Neste salão de cortinas azuis
Embaladas por valsas antigas
Pois é preciso que se lembre de nós
Neste salão de cortinas azuis
Embaladas por valsas antigas
E que nunca mais serão vistos novamente
O vento atirava contra a minha porta
Neve e folhas negras
Mas em um
casto caminho aberto entre o trigo,
A luz encontrou meus sonhos
Todas as flores que já conversaram comigo
Não me disseram nada além de mentiras
A luz encontrou meus sonhos
Todas as flores que já conversaram comigo
Não me disseram nada além de mentiras
A canção
silenciosa das flores vivas
Ressuscita em mim a vontade
De experimentar a mudança das estações
E o traiçoeiro resplendor dos meses
Ressuscita em mim a vontade
De experimentar a mudança das estações
E o traiçoeiro resplendor dos meses
E tudo
começa outra vez, eu sempre soube.
Que meu universo se recolha
E a virgem negra recebeu
Minha fronte abatida contra seu vestido
Que meu universo se recolha
E a virgem negra recebeu
Minha fronte abatida contra seu vestido
Sabedoria,
quando eu a agradeço
Pela movimentação de meus dedos gelados
Essa cândida hipocrisia
Que me liberta do passado
Pela movimentação de meus dedos gelados
Essa cândida hipocrisia
Que me liberta do passado
Ela vê o
meu amor, maior
Que o silêncio e a música
E espreita, com seus olhos enigmáticos
Meu coração, que se protege.
Que o silêncio e a música
E espreita, com seus olhos enigmáticos
Meu coração, que se protege.
Resignação
Eu não sei
onde eu vou te encontrar. Sem dúvida
Dentro do quarto, selado com cortinas rendadas.
E você verá chegar do fundo das estradas
Peregrinos sem rumo, e suas vestes escuras.
Dentro do quarto, selado com cortinas rendadas.
E você verá chegar do fundo das estradas
Peregrinos sem rumo, e suas vestes escuras.
Eu não sei
onde eu vou te encontrar. Respigador
À beira do trigo cortado onde eu estaria sentada,
Ou talvez parecido com a Esperança feliz,
Apanhadora de lírios, apanhadora de cerejas.
À beira do trigo cortado onde eu estaria sentada,
Ou talvez parecido com a Esperança feliz,
Apanhadora de lírios, apanhadora de cerejas.
Você mantém meu rosto imóvel e minha alma também,
Longe destes oceanos onde nossos desejos estão escondidos,
Com sua voz sagaz você me faria ter medo
Das florestas, das ondas pesadas e das flores sem estrelas.
Longe destes oceanos onde nossos desejos estão escondidos,
Com sua voz sagaz você me faria ter medo
Das florestas, das ondas pesadas e das flores sem estrelas.
Eu teria medo das canções que dançam nas estradas,
E revelam segredos, como fazem os Ciganos
Canções que imploram para que as escutemos
Ao bater delicadamente nas portas dos aldeões
E revelam segredos, como fazem os Ciganos
Canções que imploram para que as escutemos
Ao bater delicadamente nas portas dos aldeões
Mas há
canções pelas quais eu poderia morrer:
Elas vêm dentro da noite deslizar sobre minha face,
Ou como os pássaros voam para fora da janela
Atravessando os perfumes que as tílias agitam
E que nada trazem, mas parecem tudo prometer.
Elas vêm dentro da noite deslizar sobre minha face,
Ou como os pássaros voam para fora da janela
Atravessando os perfumes que as tílias agitam
E que nada trazem, mas parecem tudo prometer.
Anne-Marie-de-Backer
5 comentários:
Oi Si, adorei sua definição sobre vier de literatura. Suas palavras refletem a sinergia que vai além de nossas conversas.
Você sabe que eu adoro suas histórias. E também acho que sua sensibilidade, sua maneira de lidar com a linguagem, mais bacana que qualquer história. Beijo.
Nossa. Que metáfora mais linda. Potes de vidro, vidrinhos de perfume, coisinhas vividas. Muito sensível. Agora vou ler os poemas da Anne.
Nossa. Que metáfora mais linda. Potes de vidro, vidrinhos de perfume, coisinhas vividas. Muito sensível. Agora vou ler os poemas da Anne.
a maioria das formas de se expressar da arte são hobbies, mesmo dos mais talentosos [e eu acho vc talentosa, você sabe, né?], para sobreviver, temos que ser peões. Triste fato.
É aquilo que nós conversamos em nosso último almoço: acho que deveríamos procurar cristalizar as coisas com papel. Não é viver de literatura. Não é abaixar a cabeça pros PNBEs ou pro mercado dos vampiros e detetives.
É o se ver e se entender a partir da posição de "autor de livro". Você é poetisa sapatão, publicando ou não publicando. Então é o convite é "vamos publicar!" "Vamos ser autores de livros!"
Pode ser que não faça diferença, mas pode ser que faça alguma.
E eu sou uma puta ressentida com o fato de que nunca serei TNS-Literatura...
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