quinta-feira, fevereiro 06, 2014

Reflexões a partir de uma barata esmagada

Esmaguei a barata na parede. Ela era grande, bem nutrida. Longilíneas antenas.
Lamentei-me pela pintura recente, agora manchada por aquele líquido levemente avermelhado, ralo. Sangue de barata.
Pode sangue de barata funcionar como madeleine proustiana e cuspir em nossa cara estilhaços de fragmentos de passado, ruínas sobre as quais , de imediato ( e sem querer), nos debruçamos em trabalho de reconstrução arqueológica?
Aquele borrão na parede pôde e a ele se sobrepuseram outras marcas de sangue. De gente. E a parede era outra também e meu irmão, no meio da noite, a esmurrava e a chutava com fúria, a ponta dos dedões dos pés explodindo em carne viva e sangue muito, muito vermelho. (Era um barraco tão pobre que nem era preciso lamentar a pintura).
Ele tinha pesadelos. Monstros, samurais, assassinos e Bruce Lees eram as vítimas daqueles socos e pontapés desesperados e todos nós acordávamos sobressaltados com o trepidar da casa inteira.
Nossas paredes eram atacadas também em outras situações.
Quando nosso desejo rugia, por exemplo.
E nosso desejo rugia com muito mais força quando chegava a lamentável época de Natal.
Não é preciso explicar por que.
E meu irmão batia a cabeça na parede.
E eu batia a cabeça na parede.
Nosso desejo insatisfeito, uma tristeza funda ocupando, dentro de nós, o espaço de todas as outras coisas que faltavam. A aridez de nossas vidas.
A casa trepidava. O sonho ruim em plena luz, quando todos já estavam despertos.
Foi com 11 anos que entendi tudo.
Eu estudava um velho livro de biologia, ia ter prova.
Vi lá os combates nas savanas. Fascinada e assustada eu lia sobre belos e altivos felinos que estraçalhavam.
Nunca mais bati a cabeça na parede, nem quando estava com fome. Sepultei para sempre minha mágoa e revolta contra o pai e a mãe. Eles não tinham culpa, compreendi.
A vida era assim: uns estraçalhavam. Aos outros cabia a triste opção de não se deixar estraçalhar.
O tempo passou como tem mania de fazer, irremediavelmente.
Não sei se meu irmão se curou dos pesadelos.
Mas, desde então, os meus sonhos maus começaram e, em certa noite, acordei com meu grito.
Até hoje estou gritando.

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